Eu sou feminista *
Sempre me causaram grande incómodo os depoimentos de mulheres que afirmam "eu cá não sou feminista porque nunca me senti discriminada". Reduzir a História a uma condição pessoal é um malabarismo que confunde as coisas. Martin Luther King não precisou de ser escravo para saber que os negros eram efetivamente discriminados e de assumir a luta contra essa discriminação como a causa da sua vida. O conhecimento da realidade obriga-nos a escolhas. Isso basta.
Mais incómodo me causam aquelas expressões tão triviais de homens que dizem: "Feminismo? Deve haver engano: isso é com elas." O feminismo não é coisa de mulheres. É coisa da democracia. São feministas - mulheres e homens - aquelas/es que olham para a sociedade e veem nela o apoucamento das mulheres por serem mulheres. E que diagnosticam nessa discriminação a presença de relações de poder antigas, culturalmente entranhadas, que aberta ou subtilmente reservam para as mulheres um lugar subalterno no terreno social.
Há quem ainda o faça à bruta - as 14 700 queixas de violência doméstica apresentadas à polícia só no primeiro semestre do ano passado atestam-no bem. Mas o tempo e a denúncia desses atavismos encarregaram-se de revestir a discriminação das mulheres de invólucros sofisticados. Hoje, mais do que justificar a discriminação, desqualifica-se o discurso que a denuncia. É o que se passa desde logo com a absolutização dos casos de sucesso ("ela tornou--se respeitada no local de trabalho, contra todos os preconceitos, estão a ver?" ou "discriminação das mulheres era dantes, agora 65% dos licenciados são mulheres"). O caminho feito nunca justifica a cegueira do caminho por andar. E se há hoje condições sociais e culturais em que a dignidade das mulheres é equacionada em termos diferentes dos que existiam há meio século, o mínimo que apetece dizer é que mal seria se assim não fosse. Mas isso não é, não pode ser, álibi para que não reconheçamos a persistência de uma cultura de disponibilidade para menorizar as mulheres como seres humanos plenamente autodeterminados.
Que a crise financeira que nos dilacera esteja a ter impactos diferenciados sobre mulheres e homens, com o fosso salarial médio na União Europeia a atingir os 16% e com as pensões de velhice das mulheres a serem 59% das pagas a homens, que em Portugal uma mulher tenha em média de trabalhar mais quatro meses do que um homem para atingir o salário anual dele em idênticas funções - são razões de sobra para a consciência de que o feminismo é um dos discursos mais cruciais da democracia no nosso tempo.
Não tanto pela denúncia, em si mesma, destas aberrações. Mas pela denúncia da cultura funda que as torna socialmente aceites. Essa cultura foi expressa, há pouco tempo, pelo novo cardeal Monteiro de Castro. Dizia o dignitário de Roma que "a mulher perdeu muito do valor que tinha. Tem muito valor num sentido, mas noutro..." Para logo concretizar: "Um país depende muito, muito das mães, pois é ela que forma os filhos. Não há melhor educadora que a mãe. [...] A mulher deve poder ficar em casa, ou, se trabalhar fora, num horário reduzido, de maneira que possa aplicar-se naquilo em que a sua função é essencial, que é a educação dos filhos."
Esta forma de pensar, em que o valor da mulher é superlativo em casa (e não no espaço público) e em que é nela - e não nele - que se pensa espontaneamente quando se equaciona a possibilidade (residual diante da aflição económica da esmagadora maioria das famílias) de um dos pais se dedicar por inteiro à educação dos filhos, pois é aí "que a sua função é essencial", mostra como se engana quem pensa que o feminismo é coisa de mulheres e coisa do passado. Não, é mesmo da democracia e agora. E é por isso que eu sou feminista.
I
Por José Manuel Pureza *
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