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Arroz doce e amargos de boca, ou os estudantes e a crise *

Dia de festa de aniversário cá em casa é dia de trabalho para um fim de semana inteiro. Mais para uns do que para outros, claro. A aldeia ainda dorme quando o domingo começa alvacento, prometendo algumas abertas. Mas logo que acordo, com uma aula por preparar a atazanar-me a cabeça, já eu sei que estou atrasado. Na cozinha já alguém espalha o aroma do arroz afogado em leite açucarado a ferver em lume brando com o pauzinho de canela e a casca de limão. A televisão vai difundindo as más notícias através da RTP1. O café com leite deixa-me um travo amargo na boca. Será que me esqueci de pôr açúcar?
«Milhares de alunos cancelaram este ano as suas matrículas no ensino superior», anuncia a jornalista, «grande parte desistiu por razões económicas. Os estudantes dizem que não conseguem pagar as propinas, o alojamento e a alimentação. Há situações dramáticas de verdadeira sobrevivência...»
Volto a despejar uma colher na caneca, enquanto mostram a reportagem. «Então pois, a maioria ficou sem bolsa.», comenta a Sandra, espreitando o tacho do arroz doce.
«Qualquer dia não temos alunos…», digo eu. «E assim sendo, não vamos ser precisos para nada…»
«Bem vistas as coisas, alguns não andam lá a fazer nada… Ou então estão a tirar o lugar aos que gostariam de lá andar, mas não podem!», acrescenta, preparando mais um doce para a sobremesa, antes de me recordar o telefonema de uma mãe desesperada que chegou há dias à Secretaria, perguntando pela situação escolar do filho, «aquele desgraçado! Ele mente-me com quantos dentes tem na boca!», queixou-se. Queria saber as notas do aluno nas diversas cadeiras. O problema é que não é permitido prestar tal informação por telefone.
Trata-se de um aluno de Línguas Modernas, da combinatória de Inglês-Alemão, que eu conheço. Conheço-o das aulas e também de algumas fotos publicadas por colegas dele no Facebook, nas quais aparece na companhia de amigos e amigas em noitadas, ora a dormir em pé, ora a cair para o lado com um sorriso esmaiado.
No ano passado veio a meia dúzia de aulas de Cultura Alemã em que, quando não dormia de olhos abertos a sonhar com a cabeça repousada numa nuvem qualquer, até demonstrava que tinha capacidade para assimilar conhecimentos, raciocinar e exprimir ideias. Mas fazer esforços deste tipo durante um semestre inteiro com 24 horas de aulas por semana é pedir demais, convenhamos. Não há jovem que aguente! Teve o mérito de escutar os meus repetidos alertas e não deixou passar o prazo de desistência de avaliação contínua, escapando in extremis à reprovação por faltas na época normal.
O exame final era para três horas, mas não precisou de mais de trinta minutos para responder a metade das questões. Confrontado com o enorme vazio que trazia na cabeça, passou mais meia hora a pesquisar a sala com um semblante inexpressivo, contemplando o professor, as colegas, o quadro, as paredes, o teto e as janelas. Mas nem a fachada muda e monótona da Faculdade de Medicina foi capaz de lhe dar uma dica sequer para identificar, analisar e comentar um de dois textos esquecidos à sua frente. Não me soube dizer se a prova correu bem ou mal. Deu para seis valores, puxados pelas orelhas. O filme repetiu-se no exame da época de recurso e, graças aos meus esforços, até a nota foi igual.
Este ano, reencontrei-o logo na primeira aula do 2.º semestre e pareceu querer empenhar-se a sério, mas, afinal, já não o vejo desde meados de março. Estou certo de que a senhora que há vinte anos dá de comer e paga as propinas ao rapazote não desdenharia saber que, este ano, ele já tem uma cadeira feita; uma das seis cadeiras do 1.º semestre, diga-se – é obra!
«Inês e Joana!», chamou a mãe. «Vamos a levantar, que a festa é de todos! Não há cá pão para malucos…»
Por Rogério Paulo Madeira © – 22.4.2012/n.º 1 - “Instantâneos e outras fotos da vida de um professor qualquer”
I
*Rogério Paulo é um estimado amigo de há 20 anos, que me deu o prazer de publicar (e partilhar) uma das suas crónicas.

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