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OPINIÃO - A mirabolante fábula do país que tem revólveres em vez de cravos


O recente tiroteio em Orlando, cidade do Estado da Florida, está a demonstrar o quão banal este tipo de situações - os atentados terroristas – se estão a tornar. Nem se pode culpar a imprensa por isto: as pessoas rapidamente deixam o pesar e, ao invés de se unir em torno  do verdadeiro problema, entregam-se às divisões ideológicas da questão: A comunidade LGBT está de luto; os homofóbicos (que rejubilaram!) e aqueles que não o sendo têm a “semente do ódio”, camuflada por mais ou menos camadas de conservadorismo acusam os primeiros de vitimização; um determinado candidato a Presidente “agradeceu” o ataque por este lhe dar razão na questão do Islamismo radical; alguns levantaram de novo a questão das armas.

Cada grupo se envolveu em acaloradas discussões digitais, os vídeos multiplicam-se, as homenagens sucedem-se e, em breve, a vida continuará.

Menos para os que lá ficaram.

A verdade é que se tratou de um ataque de um indivíduo, crente numa religião, mas que nunca tinha sido dado como extremista, apesar de um ou outro comentário menos próprio. Um indivíduo que estava sinalizado pelo FBI e que a ex-mulher descreveu como desequilibrado, mas que duas semanas antes do ataque foi comprar uma arma com a mesma naturalidade como quem compra um iogurte. Um indivíduo que viu dois homens de mão dada e decidiu fazer justiça divina e, já com o ataque em mente, declarar fidelidade ao Estado Islâmico apesar de não se conhecer nenhuma ligação entre o sujeito e a coisa.        
     
Quero com isto deixar bem claro que defendo que foi o conjunto de factores que resultou no trágico desfecho.

Contudo, o factor que interessa para este texto é a facilidade com que o agressor teve acesso a armas e eu achei que seria interessante explicar a quem interessar qual é a cena dos americanos e as suas pistolas.

Nos Estados Unidos qualquer pessoa pode deslocar-se à loja mais próxima e comprar uma arma. Existem muitas razões que os cidadãos dos Estados Unidos oferecem para ter armas em casa. A mais comum é a protecção: ter uma arma é visto por muitos como a mesma coisa que ter um seguro – não é tenhas de a usar, mas se precisares, vais ficar contente por tê-la.

A questão da segurança é depois extrapolada para limites mais abrangentes. Se não tens armas não te podes defender de criminosos que as tenham. A polícia? Enquanto chegam e não chegam as armas podem ajudar-te a manter-te vivo. Mesmo o controlo da posse de armas é mal recebido entre os entusiastas com a justificação de que os criminosos nunca se submeteriam a esse controlo, o que prejudicaria os cidadãos cumpridores.

Há também questões sociais, claro. O tiro ao alvo e a caça são actividades recreativas fortemente enraizadas. É perfeitamente normal levar a menina a jantar num restaurante recatado e, se ela se sentir aventureira, ir de seguida a um shooting range. É banal que os pais considerem se devem investir em aulas de canto ou de tiro para os seus filhos. Existe uma certa pressão social no sentido de possuir uma arma: se estás rodeado de pessoas que têm armas, é normal que sintas a necessidade de ter uma também. E não esqueçamos a questão do status social: quanto maior e mais potente, melhor.        
      
Tudo isto explica a persistência do problema, mas não a origem. Essa é outra história, que tem tanto de bela como de retorcida. Dizer que as armas são parte da cultura americana é redutor. As armas são parte da identidade da nação. Para nós, europeus, um revólver é facilmente associado a repressão, mas para um Estadunidense é um símbolo de liberdade. Confuso? George Washington explica.

Um dos “pais-fundadores” e primeiro Presidente dos Estados Unidos, George Washington tinha uma visão muito clara sobre o direito do povo a ter armas. Talvez a citação mais forte que lhe é (erradamente) atribuída seja a seguinte: “Fire arms stand next in importance to the Constitucion itself. They are the American people’s liberty teeth and keystone under independence”. Traduzindo em termos gerais, as armas são tão importantes como a Constituição na manutenção da liberdade do povo.

Aqui devemos ter em conta o peso histórico da figura do pai-fundador. Questionar isto é talvez mais estranho para eles do que um socialista questionando o Serviço Nacional de Saúde. De facto, possuir armas é um direito constitucionalmente previsto desde 1791!

É claro que a envolvente histórica de George Washington oferece uma explicação plausível para isto: ele foi um dos líderes da revolução armada que garantiu a independência aos Estados Unidos face ao império Britânico, que tinha proibido a posse de armas pelos habitantes das colónias. Assim, querendo evitar situações de abuso dos governos no futuro, foi consagrado na constituição o direito da população a ter armas de fogo de forma a garantir a sua liberdade, inclusive perante o governo.

Fica assim explicado porque é que, nos States, ter uma ferramenta que usa explosões controladas para impulsionar pedaços de metal a velocidades letais não só é socialmente aceite como é até elogiável, e porque é que apesar de todos os massacres e tragédias, a população, especialmente a mais conservadora, encara de forma tão relutante o controlo das armas.

Obrigado pelos Cravos, Portugal.

Rui Sancho