OPINIÃO - A Deficiência Mental em Portugal – O Desafio da Estigmatização
Como um jovem adulto saudável, nunca
dispensei muito tempo à reflexão sobre a deficiência mental, apesar de conviver
com ela de forma regular no seio do meu ambiente familiar. Porém, instado a
discorrer sobre o assunto, rapidamente fui confrontado com os meus próprios
preconceitos.
Comiseração. Estigma. Tabu.
Incomodado com estes pensamentos, parti em
busca de outros com quem pudesse trocar impressões. Falei com pessoas de várias
idades e condições sociais, alguns deles cuidadores ou familiares e comecei a
notar um padrão. Aprofundando a minha pesquisa, fiquei convencido de que o
maior desafio relativo à deficiência mental em Portugal é o problema da
estigmatização.
A estigmatização deriva essencialmente da ignorância,
da categorização e da incapacidade da sociedade em providenciar as condições para
a plena inclusão social do cidadão portador de deficiência mental. Numa
sociedade altamente individualista, o valor de uma pessoa está vinculado à sua
capacidade de inserção no sistema produtivo. Isto tem efeitos altamente
nefastos quer sobre o deficiente, quer sobre aqueles que o rodeiam,
nomeadamente família e cuidadores.
No imaginário comum, o indivíduo portador
de deficiência mental assume muitas vezes as características físicas associadas
ao Síndrome de Down ou qualquer outro tipo de manifestação física causadora de
um défice a nível intelectual. No entanto, a verdade é que em muitos casos não
há nenhuma característica física que distinga o deficiente mental. Este é
apenas um exemplo de um preconceito que rapidamente se enraizou. Outro é o de
que o deficiente mental é totalmente dependente e incapaz de contribuir para o
seu próprio sustento, algo que conduziu à prevalência de uma visão
assistencialista, por parte do Estado, da sociedade e dos próprios indivíduos
portadores de deficiências. Ora, embora seja factual a existência de uma
necessidade de constante monotorização, é importante perceber que a deficiência
mental não é estanque e que a larga maioria dos casos não implica graus de
incapacidade acima dos 60%. Isto quer dizer que, com a existência de estruturas
preventivas e interventivas adequadas, a esmagadora maioria dos indivíduos
portadores de deficiência mental pode vir a ser membro ativo e contributivo na
sociedade. A importância desta questão vai bem para além das vertentes
utilitárias que se prendem, essencialmente, com questões de ordem financeira. A
grande vantagem reside sobretudo na melhoria da qualidade de vida do
deficiente, que não raras vezes vê a satisfação das suas necessidades reduzida
à mera sobrevivência, negligenciando questões mais complexas como a satisfação
pessoal e um propósito para a sua existência.
E se a qualidade de vida do indivíduo
portador de deficiência mental está intrinsecamente ligada à estigmatização, o
mesmo se pode dizer relativamente à sua família. O esforço exigido às famílias
para providenciar a educação e os cuidados que o portador de deficiência exige,
principalmente durante o período da infância, pode provocar níveis de stress e
angústia difíceis de superar. Estas famílias enfrentam vários desafios: a
aceitação de que se está perante uma condição e não uma doença; o sentimento de
culpa, o medo de ter feito algo de errado durante o período de gestação ou
mesmo após o nascimento; a vergonha originada pelo estigma associado; o
desespero provocado pela sensação de impotência; a incapacidade para lidar com
os comportamentos erráticos da criança ou com as dificuldades sentidas no
ambiente escolar devido às expectativas desajustadas relativamente ao
desempenho; as preocupações que lhes inspira o futuro quando não tiverem a
capacidade para cuidar do seu ente querido e os problemas que podem surgir no
seio do próprio casal. Todas estas reações que uma família pode vir a
experimentar são completamente normais. É preciso tempo, suporte e informações
precisas para perceber e aceitar. Mesmo depois de chegar a termos com o fato de
que o atraso mental é incurável, é muito difícil desistir da esperança de que
um dia algo fará o seu filho ser “normal”. Esta esperança é o que pode manter a
maioria dos pais na luta e é perfeitamente aceitável, assumindo que essa
esperança não os levará a exigir demasiado da criança. Muitas vezes, é
necessário um cuidador a tempo inteiro, recaindo esse peso sobre um dos
progenitores ou familiar próximo, ditando o abandono do seu emprego para poder
cuidar do seu ente querido. A meu ver, a sociedade tem o dever de cuidar dos
cuidadores, providenciando as condições necessárias não só à sua sobrevivência,
mas também ao seu bem-estar.
Apesar das muitas exigências que ainda
procuram resposta, a forma como a deficiência mental é vista em Portugal tem
vindo a evoluir de forma satisfatória. Em conversa com outras pessoas,
apercebi-me como o estigma, apesar de estar ainda bem presente, se suavizou ao
longo dos anos. As gerações mais velhas, por norma, lidavam especialmente mal
com a deficiência mental, pela ignorância e pela superstição, algo que ainda
não foi completamente erradicado e que resultou muitas vezes em situações de
negligência, abandono e até violência, especialmente nas comunidades mais
isoladas. Mesmo no seio de famílias carinhosas, a falta de informação sempre
foi um obstáculo à intervenção precoce. Ainda assim, Portugal conseguiu
diminuir a taxa de prevalência da deficiência mental entre os anos 80 e 90,
como consequência das melhorias nas condições sociais e de saúde. Mais
recentemente, temos assistido a avanços no plano legislativo, consagrando no
ordenamento jurídico os Direitos Humanos previstos na Convenção de Direitos
Humanos da Pessoa com Deficiência, mas ainda há um longo caminho a percorrer na
efetiva aplicação das normas, sendo o financiamento sempre uma questão. As
forças de segurança têm tido um papel de relevo na promoção dos direitos e
garantias de condições de vida dignas para pessoas com deficiência e na
prevenção de negligência, maus-tratos e violência, essencialmente através de
iniciativas de sensibilização tais como o “Significativo Azul”, com especial
foco na formação quer dos profissionais das organizações da área da deficiência
e reabilitação, quer dos agentes da autoridade para a problemática da
deficiência e para a necessidade de uma especial proteção das pessoas com
deficiência.
Quando a sociedade for capaz de se focar
para além do prisma da incapacidade, poderemos todos almejar melhor acesso ao
trabalho, à educação e a relações sociais mais
satisfatórias para os portadores de deficiências mentais.
Rui
Sancho