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OPINIÃO - Impacto do empreendimento hidroelétrico (mini-hídrica), projetado para o rio mondego, entre Penacova e Coimbra


Introdução

A água, matriz da vida; a água, um bem essencial, e que muitos temem se torne escasso num futuro próximo, é, por isso, obrigatório que seja protegida. Estas são já razões mais que suficientes para que na nossa consciência impere um esforço que nos obrigue a tudo fazer para proteger a água e os meio aquáticos. Mas, para além do que foi dito, todos sabemos, ou pelo menos, deveríamos saber que os meio aquáticos albergam grande parte dos ecossistemas naturais terrestres, cujo equilíbrio é fundamental para a manutenção das suas características ecológicas, para a preservação da biodiversidade que esses mesmos meios sustentam e para garantir a qualidade de vida das próprias comunidades humanas.

Estas palavras surgem como uma forma de protesto maior, porque há uma ameaça que paira precisamente sobre as nossas raízes, sobre a essência das gentes da nossa terra e sobre as paisagens que nos viram nascer. A construção de uma infraestrutura transversal no curso de água principal da Bacia Hidrográfica do Mondego não poderia ser planeada quase à revelia, sem ter em consideração todos os lesados. E este protesto é feito contra um projecto, já existente no papel, para a construção de um “pequeno aproveitamento hidroeléctrico” – que, de pequeno, pelos vistos, só terá o nome, junto à localidade de Foz do Caneiro, e sensivelmente a meio do troço do rio entre Penacova e Coimbra.

A directiva-quadro da água (2000/60/CE)

A “directiva-quadro da água”, aprovada em 2000, que foi criada pela EU para garantir a protecção e o uso sustentável dos recursos hídricos, criou algumas inovações relativamente a anteriores diplomas, os quais tem vindo precisamente a revogar. Esses novos aspectos dizem respeito ao Bom estado da água, à Gestão por bacias e ao Preço justo da água (Ricardo Garcia, 2004). Ora, é precisamente sobre estes aspectos que devemos focar a nossa atenção.

Se atendermos, por exemplo, ao bom estado químico e ecológico de um rio, é óvio que a construção de uma mini hídrica no Mondego só bem agudizar problemas, que já se nos deparam, provocados por outras intervenções descuidadas, que estão bem presentes na memória de todos aqueles que tem vivido a história mais recente do rio (nomeadamente, nas últimas 4 décadas). Devemos, por conseguinte, ter muita atenção sobre a poluição da água, verificar se há indícios que nos mostram possíveis alterações na composição e abundância da fauna e flora, se a água corre livremente e com quantidade suficiente e ainda se a vegetação ribeirinha apresenta sinais de estar ou não saudável. Fechar os olhos a estes aspectos é, para além de não estar a cumprir a lei, ser conivente com pessoas ou entidades que menosprezam esses considerandos e agem em proveito próprio, com vista a garantir os seus próprios interesses e não os da comunidade no seu todo.

Portugal, em termos de cumprimento do plano por bacias adiantou-se bastante e possui, já há algum tempo, planos de gestão para todas as bacias hidrográficas existentes no país. Isso, no entanto, não significa que as coisas funcionem bem em termos práticos. As leis existem, mas colocá-las em prática é bem mais difícil, face a interesses de corporações, tal como é bem sabido do conhecimento público.
Quanto ao preço que todos devemos pagar pela água que consumimos, é quase sempre fácil castigar os consumidores finais, diluindo no preço da água frações respeitantes à existência de infraestruras ou futuros projetos, tais como barragens, adutoras, canais de rega, ou estações de tratamento ou mesmo custos indiretos, como os ambientais. Contudo, levar em conta o princípio do poluidor pagador torna-se bem mais complicado na prática, uma vez que a poluição da água é também resultado de atividades em que não é possível identificar alguém verdadeiramente culpado, mas em que todos temos um papel ativo, como são por exemplo as escorrências urbanas ou das estradas, ou ainda resultado das descargas de águas residuais, não devidamente tratadas, ou da utilização excessivas de produtos de síntese na agricultura. A situação torna-se bem mais grave quando a impunidade impera e, pura e simplesmente, se esquecem atos premeditados, como as descargas ilegais de certas indústrias ou mesmos de pessoas particulares.

Posto isto, é importante referir um outro aspeto, que tem a ver precisamente com o fato de grandes grupos de pressão, como as empresas construtoras ou do sector eléctrico, nos imporem as suas próprias “leis”, com as suas propostas de desenvolvimento, garantia do progresso e aumento do emprego, construindo obras hidráulicas, das quais todos sabemos razoavelmente bem os efeitos perniciosos que têm sobre o meio aquático e sobre a qualidade de vida das populações ribeirinhas. É legítimo pensar que isto também nos remete para o projeto da central mini hídrica que está planeada para o Mondego. Estará previsto neste caso a aplicação do princípio do poluidor pagador? A pergunta é feita para quem de direito se achar disponível para responder, dado que os impactos sobre a qualidade das águas irão ser tantos, esquecendo de momento os outros que ainda nem sequer foram citados, mas irão ser referidos mais à frente.

Avaliação de impacte ambiental

Como todos sabemos, os estudos de impacto ambiental devem ser da responsabilidade dos promotores dos projetos. Aqueles que são talvez os principais interessados pelos resultados dos estudos, ou seja, os verdadeiramente lesados pela execução dos projectos, têm, na maioria das vezes, uma atitude quase expectante. Por outro lado, esperar que um promotor de um projecto aborde todos os descritores ambientais num estudo desta natureza só poderá ser uma expectativa inocente. Por conseguinte, as autoridades competentes deverão sempre escutar o apelo das populações e do poder local, ouvir as suas reivindicações e compreender que certos projetos não têm alternativas viáveis. É aquilo que a esmagadora maioria das pessoas pensa sobre a construção de uma mini hídrica no Mondego. É esta a decisão tomada e dela ninguém abdica, porque se sabe claramente que existe um legado que vai ser destruído irremediavelmente, caso o projeto seja posto em prática.

O que se propõe seguidamente é que na Avaliação de impacte ambiental (AIA) nada seja deixado ao acaso ou menosprezado, porque se isso se verificar, facilmente se concluirá que a decisão final sobre o estudo terá que ser negativa, ou seja, impedirá imediatamente que se construa qualquer obra daquela natureza naquele troço do rio Mondego. É esta a grande convicção das pessoas. Claro que isso está previsto na legislação respectiva (Decreto-Lei nº 69/2000), que prevê uma fase de consulta pública no processo de AIA, por isso, se agradece também que essa fase seja devida e atempadamente publicitada.

Os impactos ambientais propriamente ditos

Os impactos ambientais positivos dum projecto deste tipo são praticamente evidentes para qualquer pessoa que faça um breve esforço de raciocínio, e são facilmente empolados pela entidade proponente. O normal é referir um acréscimo na produção de energia através de uma fonte renovável; a melhor regularização dos caudais; a captação mais fácil de água para abastecimento humano e para rega; e, claro está, o aumento do emprego na região. O que se pode dizer sobre o aumento da produção energética é que de fato ele não seria nada considerável; a regularização de caudais é desnecessária e a captação de água para abastecimento ou para rega também; e o crescimento do emprego nunca se verificaria.

Segundo Ricardo Garcia, «Portugal tinha, em 2001, 98 mini hídricas responsáveis por cerca de 1,5 por cento de toda a energia eléctrica produzida no país.» in Sobre a Terra, Um guia para quem lê e escreve sobre o ambiente, pág., 177, ed. Público. Aquele autor afirma ainda que «embora pequenas, as mini hídricas acabam por reproduzir, em menor escala, alguns dos problemas ambientais das grandes barragens, como a retenção de sedimentos, a alteração da dinâmica do curso de água e a constituição de uma barreira física para os peixes. Por isso é que a sua construção é, muitas vezes, alvo de críticas por parte de associações ambientalistas e populações locais.» A percentagem de energia produzida por esta via é de facto tão diminuta, que podemos garantir ser a promoção deste tipo de projetos mais uma forma de alimentar lobbys, que uma verdadeira alternativa para a produção energética, tendo em conta os inúmeros problemas ecológicos, ambientais, sociais e económicos que despoleta.

Ninguém poderá negar que existem alternativas mais viáveis à produção de energia, na região em causa, através de tecnologias verdadeiramente renováveis, tais como a eólica, a biomassa, ou mesmo a solar. O aumento da potência instalada em centrais já existentes também é uma possibilidade em aberto, ou, simplesmente, a ótima gestão de recursos existentes. Quanto ao controlo de caudais, atualmente, isso é um falso problema, porque as barragens a montante servem plenamente esse fim e servem também para o abastecimento de água para consumo humano e para rega. No que diz respeito ao emprego, se alguém se lembrar de o mencionar, é favor esquecer, pois bem mais lesados ficaríamos nesse aspeto, a muito curto prazo de tempo, como esperamos demonstrar mais à frente.

É claro que as pessoas de Penacova compreendem que as necessidades energéticas crescentes da sociedade moderna e a substituição progressiva da produção de electricidade a partir de combustíveis fósseis, por processos produtivos renováveis, obrigam a uma aposta crescente em projectos menos poluentes. É importante lembrar que temos um Município muito rico em área florestal, que, à semelhança do que se passa com a do restante país, está quase sempre muito mal gerida, invadida por espécies alienígenas (especialmente mimosas) que é importante controlar o quanto antes. Existem grupos de serranias nos arredores de Coimbra nas quais é quase de certeza viável a construção de parques eólicos. Temos no Concelho centrais hidroeléctricas (Aguieira, Raiva e Fronhas) que eventualmente podem ser aumentadas na sua potência instalada, se para tal houver boa vontade. A tecnologia existe e o engenho humano também. A inércia que impede muitos de mudar a sua atitude e os seus pensamentos, não será mesmo só isso: um estado de quietude que impossibilita ver mais amplamente e tomar o primeiro passo para a mudança.

Voltando ao assunto central, será que a construção de uma mini hídrica no Mondego é de fato uma aposta no renovável? Isso é verdadeiramente discutível. Se um legado ecológico e paisagístico é profundamente alterado, ou mesmo destruído, pensamos que esse argumento cai completamente por terra. Sabemos perfeitamente que jamais voltaríamos a ser aquilo que fomos até agora, porque isso teria um impacto desastroso, inclusivamente a nível social e económico. A nível do património da paisagem, alteraria profundamente uma zona que é riquíssima, o vale do rio no maciço montanhoso localizado imediatamente antes da foz do Ceira e da entrada no baixo Mondego. Afectaria sobre maneira a biodiversidade no ecossistema do rio que é caracterizado por possuir espécies endémicas (salamandra lusitânica e salamandra de costelas salientes); afectaria drasticamente as espécies mais sensíveis da ictiofauna, como a lampreia, cuja fase larvar, -mais duradoura,- requer águas despoluídas, pouco profundas e livres de sedimentos lodosos; e a vegetação ribeirinha que é importantíssima em todo o ciclo de vida dos animais que habitam o rio.

Todas as espécies que se adaptaram, ao longo de milhões de anos, a um troço de rio com características tão específicas, iriam agora ter de vencer obstáculos extremos, aos quais de certeza sucumbiriam grande parte delas. Outrora, existiam algumas populações de lontras na zona de Penacova. É um animal bastante tímido, que raramente se deixa ver. Mas é um mamífero emblemático das zonas ribeirinhas que ainda se mostram relativamente límpidas, uma vez que é bastante sensível à poluição. Sabemos que num passado recente ainda costumavam ser avistados fugazmente alguns indivíduos, porque houve gente local que teve esse privilégio. Tememos seriamente que isso nunca mais aconteça se se construir essa obra.

A extração abusiva de inertes, a construção de grandes obras de engenharia em pleno curso do rio e movimentação de aterros junto às margens têm alterado profundamente a sua dinâmica e o equilíbrio das populações de fauna e flora. Por via disso, as águas perderam grande parte da capacidade de conter e captar oxigénio do ar. Isso torna-se perigoso para os seres vivos que vivem do rio, inclusivamente para o homem, ainda mais porque os focos de poluição actualmente são muito maiores, devido às descargas de águas residuais e águas que percolam dos campos agrícolas. A estagnação numa albufeira, que promove o acumular de sedimentos contínuo a montante da barreira física, impossibilita o reabastecimento natural de inertes a jusante, criando condições para forte erosão. Há quem já tema, com toda a legitimidade, pelo futuro das praias fluviais próximas de Coimbra, antes da foz do rio Ceira.

O rio Mondego, especialmente, naquele troço, é um local privilegiado para o lazer, onde tanto os locais como visitantes de todo o país se deslocam para veraneios, pesca desportiva, prática de jogos de entretém e vários desportos radicais, que têm um papel importantíssimo para o convívio salutar entre indivíduos. Há que salientar que tudo isso se perderia com a construção de uma mini hídrica. Existe já uma exploração turística direta do rio, por empresas ligadas a atividades de lazer como a canoagem, precisamente naquele troço, com um movimento de capital a rondar um milhão de euros anuais. Há que referir ainda que a construção da mini hídrica está prevista para um local que se situa aproximadamente a meio do percurso das descidas de canoa. Aquela região é visitada anualmente por cerca de 30 mil pessoas. Tudo isso gera receitas para o Estado, cria cerca de 40 empregos diretos que são funcionários das empresas ligadas aos desportos radicais e gera grandes receitas para a hotelaria, restauração e artesanato.

Analisando agora as obras auxiliares que o proponente se compromete a fazer (uma escada de peixe e uma passagem para as canoas), gostaríamos de lembrar que isso apenas teria um efeito ilusório na mitigação dos problemas que nos seriam criados pela construção da barragem. De nada adiantaria permitir a passagem aos peixes se depois a montante eles iriam deparar-se com um habitat profundamente alterado e poluído e com uma capacidade de renovação e depuração das águas irremediavelmente afetadas; se era criado um lençol de água praticamente estagnado até à praia fluvial do Reconquinho, de águas bem mais profundas, alterado também ao nível de outras propriedades físicas como a turbidez, a luminosidade e a temperatura. Quanto à passagem para canoas, de nada valeria, dado que as descidas de rio perderiam todo o encanto, por comportarem maior risco de afogamentos; medo, devido à profundidade da água; menor proximidade dos grupos, devido à maior extensão de espelho de água; maior possibilidade de choques térmicos e incongestões; e menor desfrute de paisagem. Ou seja, seria o fim desta atividade.

Por outro lado, a qualidade dá água de consumo em Penacova - ficando a ETAR e a captação de água na mesma bacia inundada, seria também afetada ou obrigaria a outros tipos de investimentos, de dimensão nada aconselhável. Mas o surgimento dessa bacia, por si só, acrescentaria ainda outros problemas também na captação de águas para abastecimento, por exemplo. Se a mini hídrica fosse construída, haveria riscos sérios de diminuir drasticamente a oxigenação das águas, o que dificultaria a sua depuração natural e aumentaria os níveis de toxinas. Alguns penacovenses já tiveram dissabores por beberem água que é captada junto à albufeira da Raiva, que apresentou em determinada altura níveis elevados de sólidos suspensos.

A agricultura, uma actividade que, sendo feita de modo adequado, deve ser vista como a base do sustento das populações, tornar-se-á num futuro próximo uma verdadeira ajuda até no combate ao próprio desemprego e à pobreza extrema. É nela que reside a derradeira esperança de muitos portugueses. Os terrenos de aluvião marginais ao Mondego são ainda utilizados por inúmeras pessoas, e, embora alguns se encontrem em estado de abandono, isso não significa menos produtividade futura, antes pelo contrário. Seria criminoso impossibilitar as pessoas de usufruir deste recurso, com segurança e na sua totalidade, inundando os campos e prejudicando seriamente os trabalhos agrícolas, numa altura de crise em que muita gente se verá sem trabalho e terá que se voltar para a agricultura. Esta obra impossibilitaria também o uso das bateiras que são típicas no Mondego, como meio de transporte para aceder aos campos.

A lampreia, a partir da qual se faz em Penacova uma delícia gastronómica (o arroz de lampreia) tão apreciada por gente de todo o país e que possibilitou o título de Capital da lampreia, a esta Vila cheia de rusticidade, correria o risco de desaparecer, e, com ela, todo o legado cultural, tradicional e gastronómico criado a partir de hábitos e costumes cujas origens se perdem na memória dos tempos. Tudo isso correria o risco de desaparecer. E não há obra de progresso desadequada que nos demova do nosso verdadeiro objectivo, que é precisamente lutar pela manutenção da autenticidade desta região, pela defesa dos valores tradicionais, culturais e costumeiros das nossas gentes. É a isso que se chama defesa do património nacional. É a isso que se chama lutar por Portugal.

Ao longo dos últimos trinta anos, o Mondego tem sido alvo de vários atentados. Não esquecendo a descuidada construção das barragens e do IP3, a exploração exaustiva dos inertes na região de Penacova foi talvez o que criou modificações de paisagem mais acentuadas, neste troço entre Penacova e Coimbra, e o impacto maior no ecossistema do rio. Tudo isto aconteceu com grande promiscuidade entre as autarquias locais, o poder central e as empresas de extração. Tem existido um excelente trabalho da Plataforma Mondego Vivo, da qual fazem parte a Confraria da Lampreia e vários empresários da região, entre outras pessoas, na denúncia dos casos mais recentes. Chegou o momento de dizer: basta! É preciso fazer um forte apelo às autoridades competentes em nome do Mondego e das pessoas que dele dependem.

Em conclusão, este projeto de engenharia não augura nada de bom para a região e para o Mondego e poderia constituir um duro golpe de misericórdia em concreto para Penacova, uma zona turística por excelência, de características rurais, com uma ampla história de tradições e mais antiga que a própria nacionalidade. Penacova é uma terra que sempre viveu em comunhão com o rio Mondego e a ele deve agradecer o seu passado com história e esperemos também o futuro. Não é justo que se continue as ostracizar as zonas rurais já de si mais esquecidas de apoios, que se tente explorar os seus recursos próprios de forma impune e sem a mínima inteligência, com a justificação de alimentar e acompanhar o progresso. Sabemos perfeitamente que nem sequer seriamos os beneficiários diretos dessa misera produção energética e sabemos ainda que o futuro realista da humanidade não está no aumento sem controlo algum da produção energética, mas sim numa mudança de paradigma que terá a ver mais com baixas progressivas de consumo e maior respeito pelos princípios ecológicos que são, em ultima análise, formas de poupança de recursos, sem haver lugar a esbanjamento e desperdícios.


Texto de  Ulisses Baptista (originalmente publicado em 20/01/2012)
 

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