A violência da revolução tranquila *
"Não podem tolerar em democracia o que não toleraram em ditadura" - assim fundamentaram os ativistas da crise académica de 1962 o seu repúdio das recentes cargas policiais em Lisboa. Alfredo José de Sousa, Vera Jardim, Medeiros Ferreira, Jorge Sampaio e os seus companheiros de há sessenta anos mostraram deste modo a lucidez de quem sabe que a luta contra a prepotência violenta não tem data fixa na história. Para os que dizem não saber bem o que é isso de educar para a cidadania, esta posição pública é uma resposta esclarecedora.
A "revolução tranquila" que Passos Coelho se vangloria de estar a fazer em Portugal é de uma violência extrema. Violenta nos conteúdos e alcance porque atira o País para um dualismo sem precedentes entre os direitos dos ricos e os direitos dos pobres e condena um número imenso de pessoas a uma vida que não pode ser mais do que uma simples busca da sobrevivência diária. Violenta na sua cultura porque legitima discursos de desqualificação dos mais frágeis - "piegas", "preguiçosos", "subsidiodependentes" - e faz a apologia da competição como modo de vida superior. E violenta também nos métodos. Cada vez mais violenta.
Desde o início desta "revolução tranquila" instalou-se em Portugal um discurso securitário, animado por "relatórios" e "informações" cujo rigor se revelou até agora sempre inexistente. Quando da cimeira da NATO em fins de 2010, anunciavam uma invasão de membros do Black Block. Foi o que se viu. Desta vez, ao que consta, os serviços secretos terão avisado o Governo do risco de, no dia da greve geral, serem usados cocktails Molotov, haver bloqueamentos de ruas e avenidas e sucederem práticas típicas de uma insurreição geral. Ângelo Correia, então ministro, inaugurou a rábula da prevenção da insurreição há cerca de trinta anos. A realidade dos factos humilhou-o então. Tanto tempo depois, os securitaristas portugueses dão mostras de nada terem aprendido com essa humilhação.
Esses cultores da supervigilância e da prevenção musculada de atentados à ordem pública (quais?) vivem num universo estreito e triste, feito de suspeição sobre tudo e todos, de anátemas e estereótipos ao nível do mais primário senso comum, em que ordem significa sempre e só perpetuar o que está. Mesmo que esteja mal.
Que o Governo de Passos Coelho - o tal da "revolução tranquila" - faça desse universo da espionagem e da vigilância um suporte essencial do seu relacionamento com o País e dê sinais de o querer completar com comportamentos policiais de agressividade despropositada é um sinal dos tempos. Que o Ministério da Administração Interna tenha sido o único com dotação orçamental acrescida em tempos de penúria elogiada de todas as políticas públicas - apesar de isso em nada alterar os baixíssimos salários e as condições precaríssimas de desempenho dos corpos comuns de polícia - é outro, mais concreto ainda.
Para esta direita que nos governa não há vislumbre mínimo da compreensão da justiça social como único pilar realmente sólido da ordem pública, algo que marcava presença em partes do discurso fundador do PPD. A overdose de liberdade do mercado e a repressão violenta dos seus adversários são duas faces da mesma moeda única desta nova direita, afinal tão velha.
As cargas policiais do dia da greve geral mostram mais um rosto do "custe o que custar" que anima o Governo. Sessenta anos depois de os estudantes terem denunciado a blindagem da autoridade pela força bruta, é altura de os democratas resgatarem esse desassombro e rejeitarem em democracia o que nem em ditadura se pode aceitar.
I
Por José Manuel Pureza *
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