Últimas Notícias

MEMÓRIAS - Penacova "enterrou o bacalhau": uma notícia de 1910



Faz agora um ano, recordámos neste espaço do Penacova Actual  o  “Enterro do Bacalhau” de 1932 (veja aqui). Não voltaríamos ao mesmo assunto se, numa das nossas pesquisas, não tivéssemos encontrado um interessante relato desta manifestação popular em Penacova,  ocorrida, desta vez,  em 26 de Março de 1910, “Sábado de Aleluia”.  Naquele ano,  o Enterro do Bacalhau terá tido um impacto maior do que em anos anteriores, a fazer fé na minuciosa descrição do “préstito” a que só nos falta, lamentavelmente,  o conteúdo dos “sermões” que ao longo do percurso  iam sendo proferidos.
Mas para que nada se perca,  o melhor será mesmo passar a transcrever:
Como o havíamos previsto foi um verdadeiro sucesso o enterro do bacalhau que teve lugar nesta vila na noite de sábado de aleluia.
 A afluência do povo ao funéreo e burlesco enterro, foi extraordinária, incomparavelmente maior que nos dias festivos da Semana Santa, que como dissemos já, foi este ano de via reduzida. O povinho ficou embasbacado ante o aparato para si estonteador e nunca antes visto na nossa terra.
Realmente o efeito do préstito tinha algo de fantástico. A profusão das luzes dos archotes do préstito casadas com a iluminação de quase todos os prédios das ruas por onde este passou, os carros também iluminados, as exóticas e burlescas figuras e a música extravagante ora cadente como uma ladainha, ora alegre e salerosa que compunha o préstito, entusiasmou deveras a multidão para quem o espectáculo era verdadeira novidade.
Eis a traços largos a descrição do préstito:
Às oito e meia horas pôs-se em marcha o préstito saindo das proximidades da bela vivenda do considerado Sr. Joaquim Augusto de Carvalho [actual Casa de Repouso] obedecendo à seguinte ordem:
 À frente, montados em ronceiros jericos, vinham dois batedores, com trajes de cores berrantes, tendo por elmo um testo de panela e por escudo um bacalhau. Seguia-se-lhe depois um engraçado guião ornamentado com bacalhaus, sardinhas, cebolas greladas, couves, batatas, etc. servindo-lhe de cordões compridas réstias de cebolas.
Após o guião seguia-se uma crítica à iluminação da terra. De um lado, um candeeiro apagado, do lado oposto um outro aceso (iluminação em noite de luar).
Depois seguia-se um enorme número de bandeirolas, habitualmente desenhadas pelo jovem artista Sr. Abel Eliseu, de Coimbra, em cada uma das quais se lia uma inofensiva e sempre espirituosa piada, iluminada cada uma por um curioso candeeiro em cujos fingidos vidros se via desenhado um bacalhau, sendo cada uma conduzida por um sacristão vestido a carácter; grandes tabuletas iluminadas interiormente, numa das quais se viam afixados em placards, espirituosos telegramas e noutra um picaresco “Roteiro do Viajante de Penacova” [uma referência à obra de Augusto Simões de Castro?]; uma outra ainda, era um flagrante, embora um tanto pesada crítica, às retretes públicas cá do largo.
Seguia-se depois um carro, estilo romano, lindamente ornamentado, conduzindo um gaiato rev.do, na frente do qual se liam as seguintes palavras “ requiscat in pace”.
Todavia, ali ninguém descansava. A seguir a esse carro, outro conduzindo o defunto bacalhau cujo cadáver media cerca de metro e meio de comprido. Este carro era ladeado e seguido pelos membros da Comissão do enterro e, outros conduzindo coroas de réstias de cebolas greladas, etc. oferecidas pelas muitas sociedades… defuntas desta vila, sucedendo-lhes depois a guarda de honra composta de um batalhão de petizes uniformizados e armados com espingardas de cana, comandados por dois oficiais, um a pé e outro a cavalo, correctamente vestidos.
 Seguia-se ainda um carro de burlescos anúncios, fechando o préstito a Filarmónica Penacovense que tocava uma ratona marcha propositadamente composta para aquele fim pelo nosso amigo Sr. A. Casimiro G. Pessoa.
Cinquenta archotes iluminavam o préstito no qual ainda iam incorporados grande número de padres, profetas, frades e muitas outras exóticas e indefiníveis figuras.
 Em diversos pontos da vila foram pronunciados alguns sermões, alguns deles de espírito. Enfim, foi um sucesso e um grande acontecimento para um burgo apático e podre a propósito de diversões, como é o nosso.
 A Comissão que era composta dos jovens Alberto de Castro, Joaquim S. Cardoso, Quim Coimbra Leitão e João Casimiro, tirou uma subscrição para atender às despesas do préstito. Como lhe sobrasse, pagas todas as despesas, a importância de 1$300 réis, distribuiu-a pelos pobres. Não podiam arrematar melhor a sua festa, os simpáticos e alegres jovens. Os nossos aplausos.”
Penacova foi uma das terras onde, até ao início dos anos trinta, este costume foi mantido. Uma nota curiosa: em 1910 aparece-nos o nome de Alberto de Castro, (na altura ainda não tinha adquirido o apelido Pita) e em 1932 um dos organizadores foi também o seu filho José). Depois daquele ano não há notícia deste evento. É que por essa altura foi proibida a sua realização a nível nacional. Hoje, a recriação do Enterro do Bacalhau vai sendo feita em diversos pontos do país, sendo o caso de Soutocico (Leiria) o mais mediático. Mas também Pampilhosa (Mealhada), Figueira da Foz, Góis, Barreiro, Moita, são exemplos de manifestações culturais no mesmo sentido.

E se Penacova, pegando nestes e noutros registos que possam ser pesquisados, viesse também para a rua num qualquer Sábado de Aleluia?

 David Almeida