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"Cercados pelo fogo, a respirar rente ao chão" - reportagem do jornal Público

Quatro bombeiros estiveram quase uma hora cercados pelas chamas em Penacova no último domingo. Quando foram resgatados, estavam exaustos. Abraçaram-se e choraram. Por pouco tempo. Nesse mesmo dia, um deles avançou para um incêndio numa casa.
Reportagem
Ana Cristina Pereira 
Transcrição
Pedro Viseu


A temperatura subira muito. Os ventos ora se viravam para um lado, ora para o outro. De rompante, alguém gritou: “Temos de fugir! Temos de fugir!” Quando Renato Lopes saiu já as chamas tinham alcançado o veículo rural de combate a incêndios que ele conduzira até ali. Correu com os três companheiros dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova de Poiares pelo terreno ardido fora. Só pararam numa intercepção de três estradas.
Deitaram-se no chão. O fumo sobe. Rente ao chão, respira-se melhor. Há maior concentração de oxigénio. Ardia uma manga de casaco de um homem. Apagaram-na tão depressa que ele não se queimou. E deixaram-se estar, deitados. Não se podiam aventurar. A cortina de fumo não deixava ver escapatória.
Era 11 de Agosto, domingo de festa de Nossa Senhora das Necessidades. Não fora aquilo, estariam a preparar a farda de gala para participar na procissão que sucederia à missa solene. Não há maior romaria do que esta naquele concelho do distrito de Coimbra. Há 59 anos que a corporação lhe faz guarda de honra.
Em casa, junto à Câmara de Vila Nova de Poiares, o comandante Luís Sousa vira o fumo. Ligara para o quartel, na zona industrial. O Centro de Operações de Socorro de Coimbra pedira reforço para o incêndio, que deflagrara às 13h47 na localidade de Carvoeira. E ele autorizara a saída de uma equipa e ordenara que se preparasse outra. Pegara no carro e precipitara-se para lá. Tinha de se fardar. Já nem se cruzara com Renato e os outros três que seguiram na segunda viatura.
Renato saíra esfomeado. O motorista, de 39 anos, acabara de socorrer uma idosa que sofrera uma queda. Ia almoçar, ali mesmo, no refeitório. “Foram umas colheradas de canja para a boca e saí.” Quando telefonou a contar que estavam cercados pelas chamas, o comandante já tinha enfiado a farda e as botas e ia a sair, sozinho, no jipe, o chamado veículo de comando operacional táctico.
— Ardeu o carro! – anunciou.
— E estão bem? – perguntou o líder.
— Estamos! Precisamos é que nos venham buscar.
Luís Sousa acelerou, estrada fora. Os homens estavam a salvo do lume. Havia um raio de uns 50 metros. Tudo o que havia para arder aí já tinha ardido. Mas era preocupante o calor extremo, o fumo denso, os níveis de monóxido de carbono. Quanto tempo resistiriam? Tinha de os tirar de lá.
O comandante dos Bombeiros Voluntários de Penacova, António Simões, dirigia o teatro de operações. É muito experiente. O professor, de 56 anos, entrou na corporação em 1985 e em 1996, após um curto interregno, assumiu aquele cargo. Não tem memória de alguma vez ter vivido algo assim. Também perdera dois veículos rurais de combate a incêndios e tivera uma dezena de homens em risco com aqueles golpes de vento.
Tudo aquilo aconteceu no princípio do incêndio. “Nem tinha havido tempo para montar uma estratégia”, afiança António Simões.
Os homens tinham delineado um ponto de fuga. Até tinham entrado em marcha-atrás, para ficarem na direcção certa. Quando param num lugar, têm instruções para pensar: “Se isto correr mal, para onde é que a gente foge?”. “Foi a Lei de Murphy”, interpreta Luís Sousa. “Se existir mais de uma maneira de uma tarefa ser executada e alguma delas resultar num desastre, essa será a escolhida.”
Estavam todos juntos. Os de Vila Nova de Poiares fugiram numa direcção. E permaneciam rodeados de chamas, ocultos pelo fumo. Por mais do que uma vez, um deles desmaiou. Os de Penacova fugiram noutra. O seu comandante correu a abraçá-los: “Deixem lá que já passou. Carros há muitos, já passou.”
“Por que arriscámos tanto?”, pergunta António Simões, agora. “Tivemos cerca de uma centena de incêndios desde Janeiro. Num deles, fugimos à primeira intervenção: este. A floresta está num estado… Nada está limpo. Se não seguramos um incêndio na primeira intervenção, as casas podem arder. E as casas têm dono. Nas casas moram pessoas. As pessoas têm sentimentos.”


O incêndio deflagrara a uns 150 metros de Sanguinho e virou-se para essa aldeia. Haveria de atravessá-la, rente às casas. Aflitos, os moradores tentavam  ajudar a apagar as chamas com água e ramos. O último incêndio a apanhar a aldeia remonta há 30 anos. Também era fim-de-semana de festa de Nossa Senhora das Necessidades. Desta vez, a aldeia de Riba de Cima também haveria de correr perigo. Um carro dos Bombeiros Voluntários de Brasfemes também haveria de ser devorado.
António Simões cedeu um dos seus subchefes a Luís Sousa, para o ajudar a resgatar os seus homens. Seguiram com um morador de confiança, que conhecia bem aqueles caminhos fáceis de confundir.
O comandante mantinha-se em contacto com Renato, o bombeiroque, além de voluntário, é funcionário da corporação. “É uma angústia muito grande enquanto não chegamos ao pé dos homens para os ver”, diz. “Eles dizem que estão bem, mas nós ainda não os vimos.”
Para apagar chamas e arrefecer a zona, água era despejada de meios aéreos. Não sobre eles, que ninguém sabia bem onde estavam. Sobre o incêndio, que continuava num desvario. Encontraram-nos uns 45 minutos depois de terem ficado encurralados, já sem chamas à volta. Estavam sem forças. Tinham inalado muito fumo. Abraçaram-se todos. Choraram. “Estamos vivos, estamos vivos”, diziam.
Arrumaram-se os nove homens dentro do jipe. Foram assim, apertadinhos, até ao centro de Carvoeira. Dali, dois seguiram numa ambulância para os Hospitais da Universidade de Coimbra, outros dois para o Centro de Saúde de Penacova. Só então Renato ligou à mulher, Elisabete Lopes.
“Quando há uma situação de perigo, fico com o coração apertadinho, seja pelo meu marido, seja pelos outros”, confessa ela. Ela é que recebera a chamada a pedir reforço. Estava a cumprir o seu turno de telefonista no quartel dos Bombeiros de Vila Nova de Poiares. Vira-o a sair. E ficara aflita a pensar nele, no que seria dela e do filho de ambos.
Conheceram-se no quartel. Decorridos seis meses, casaram-se.
Cumprem turnos de oito horas de funcionários da associação e turnos de 12 horas de voluntários. Ela incentiva-o a avançar sempre que a sirene toca. Uma vez, estourado, ele quis ficar e ela pôr-se a discutir. “Anda!”
Naquela tarde, ao sair do centro de saúde, Renato só queria comer. Comeu. E saiu para um incêndio numa casa. “O que não nos mata só nos torna mais fortes e ‘bora lá’”. É um lema de vida seu esta frase do filósofo Friedrich Nietzsche. “Uma vez, tive um acidente. Vinha a andar bem, mas já tinha passado mais depressa naquele sítio. Durante dois ou três dias, passei mais devagar, mas foi só dois ou três dias.”
Ainda no ano passado, Renato viveu algo parecido, embora “menos preocupante”.
“Conseguimos criar segurança, digamos assim. Não ficamos fechados dentro do queimado. Tivemos de tirar o carro. Também foi uma mudança [de ventos]. Saímos para o lado errado. Ficámos sem muitas opções. A opção era atacar com força. Atacámos. A melhor defesa está no ataque.”


Os incêndios são uma pequena parte do quotidiano de um bombeiro. Pensando bem, o pior que aconteceu a Renato nestes anos todos foi socorrer uma rapariga com um aneurisma no cérebro. “Não morreu na ambulância. Morreu no hospital, minutos depois. Andei uns dias a perguntar-me o que poderia ter feito.” Volvido algum tempo, regressou à mesma casa. “O motorista era o mesmo, o socorrista era a mesmo, a ambulância era a mesma, a mãe era a mesma, a filha não era, mas os sintomas eram. Quando cheguei à porta, a mãe disse: ‘Tu!’ Eu disse: ‘Sou. Sou eu.’”
“Um bombeiro não é um herói”, defende Luís Sousa. “Um bombeiro faz actos heróicos. Um bombeiro faz salvamentos, arriscando a vida, sem fazer propaganda disso. Faz por gosto, se calhar por vocação.” Este gosto ou esta força é algo que nem um nem outro explicam. Este gosto ou esta força é algo que, para um e para outro, não tem explicação.
Têm orgulho nas fardas que envergam. E, desta vez, a procissão de Nossa Senhora das Necessidades saiu da capela e percorreu as principais ruas da vila sem eles. Ia uma dezena de bombeiros vestida a preceito — uns da reserva, outros do quadro de honra, um ou outro dispensado do serviço.
Era uma correria lá para cima. A mulher do comandante telefonou-lhe duas ou três vezes, na hora do aperto, mas ele não atendeu — ligou-lhe mais tarde, quando encontrou uma aberta.
Em Penacova, continuava a lavrar o incêndio, que chegou a envolver 380 homens. Às 18h30, tinha três frentes activas. Por volta das 20h, uma frente. Às 21h, a Autoridade Nacional de Protecção Civil decretava-o dominado. Mas havia  ainda pequenos focos activos, pequenos reacendimentos. No fim, tinham ardido uns 150 hectares, tinham sido devoradas quatro viaturas, que, novas, custam à volta de 150 mil euros cada.
Na segunda-feira, Penacova ainda andava com os restos do incêndio de domingo. No ar, o cheiro a fumo misturava-se com o cheiro a borracha queimada. Terça-feira de madrugada, dois novos incêndios. Quarta-feira de manhã, outros dois. Nos últimos dias, o comandante mal tem ido à cama. Anda cansado. Ainda não teve férias este Verão: “Em dez dias, tivemos 25 incêndios. Já não há paciência.”
A Polícia Judiciária anda a investigar. Na freguesia de Lorvão, nunca se viu tanto incêndio. Vários a ocorrer em simultâneo, vários a deflagrar de madrugada. Terça-feira, por exemplo, às quatro da manhã, deflagraram dois à beira da estrada, a uma distância de três quilómetros um do outro.
Ninguém pode parar. Os bombeiros de Penacova mantêm-se ao serviço. Os de Vila Nova de Poiares também, embora por estes dias os dois que acorreram à urgência hospitalar estejam salvaguardados de fumos. Ninguém quer falar, apenas Renato, mas sem referência aos 45 minutos de terror.
“Esta fase a seguir é complicada”, justifica Luís Sousa, do alto dos seus 45 anos.
Comoveram-se na terça-feira, quando foram ao carro com a Inspecção da Autoridade Nacional de Protecção Civil. Agarram-se ao carro a chorar. “Há momentos de maior fragilidade”, salienta também António Simões. “Se calhar, estamos todos a viver esses momentos.” Para lá do susto e dos danos materiais, morreu o cão que morava no quartel dos Bombeiros Voluntários de Penacova desde 1996. Chamava-se Fogo.

Reportagem publicada na edição impressa do jornal  "Público" de 18.08.2013,

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