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LAMPREIA - Quem o feio ama delicioso lhe sabe

A época alta da lampreia está a chegar para regozijo dos fanáticos da iguaria com honras de peregrinação gastronómica no verde Minho. Venerado por uns, detestado por outros, o ciclóstomo não deixa ninguém indiferente


No restaurante “O Gaveto” a devoção da lampreia tem dia como os Santos – 1 de janeiro
Rui Duarte Silva

O que é que é que nasce no rio, migra para o mar e regressa ao habitat natural para se reproduzir (e cair na rede) no dealbar de cada ano novo? A resposta certa é o ciclóstomo, vulgo lampreia, petisco requintado, apreciado sobretudo em Portugal, Espanha e França. No Vale do Minho, a época alta da lampreia começa a 1 de fevereiro e dura até meados de abril, mas a iguaria — que uns amam tanto quanto outros odeiam — já começou a chegar à mesa de muitos restaurantes do Porto e norte do país. “Aqui há Lampreia”, anuncia-se diligentemente em tarjas de letras gordas nas portas e janelas de espaços de referência até às tascas mais informais e genuínas.

O bicho feio e caro como poucos, viscoso como uma cobra, tem o condão de não deixar ninguém indiferente à sua passagem. Uns, simplesmente pelo aspeto pouco amigável, são incapazes sequer de provar a famosa lampreia, dominados por uma repulsa visceral. Os mais curiosos atrevem-se a experimentar a medo, ficando vacinados ou viciados para a vida à primeira garfada. Uma vez conquistado o palato, os que resistem tendem a engrossar as fileiras dos comensais que não dispensam pelo menos uma ida anual à lampreia, reservando mesa nos restaurantes prediletos com semanas de antecedência. No rio Minho, entre Monção e Melgaço, santuário da lampreia, a pesca do ciclóstomo ainda observa rituais que remontam ao século XIII, a começar no lançamento das redes de madrugada em pesqueiras de nome próprio, pequenas construções de pedra herdadas de pais para filhos, onde se afadigam pescadores sem mãos a medir para satisfazer a procura da iguaria aquém e além-fronteiras.

Por tradição, a lampreia serve-se em geral em duas versões: em arroz, prato tipicamente minhoto, ou à bordalesa, de receituário importado de Bordéus. Em qualquer das variações, a lampreia mata-se de véspera, razão porque chega aos restaurantes ainda viva. Um dia antes de ir para a panela, é escaldada ainda viva ou logo após o estertor para retirar o lodo sem tirar a pele. De seguida, esventra-se, retira-se a tripa e sangra-se a lampreia, que ficará a marinar para ganhar tempero no sangue, vinho verde tinto, sal, cebola, alho e loureiro.

Do tanque para a panela

Por tradição, a lampreia serve-se em geral em duas versões: em arroz, prato tipicamente minhoto, ou à bordalesa, de receituário importado de Bordéus. Em qualquer das variações, a lampreia mata-se de véspera, razão porque chega aos restaurantes ainda viva. Um dia antes de ir para a panela, é escaldada ainda viva ou logo após o estertor para retirar o lodo sem tirar a pele. De seguida, esventra-se, retira-se a tripa e sangra-se a lampreia, que ficará a marinar para ganhar tempero no sangue, vinho verde tinto, sal, cebola, alho e loureiro.


No azeite e alho, há lampreia e em versões inovadoras – Lucília Monteiro

A 12 de fevereiro, nas Termas de Melgaço, a temporada da lampreia terá um momento alto com a mostra de pratos de confeção clássica — como o arroz de lampreia, a bordalesa ou lampreia seca e fumada assada na brasa — e ainda receitas inovadoras, aprimoradas pela Escola Profissional do Alto Minho Interior (Eprami). Lampreia recheada, de escabeche ou sushi, são alguns dos desafios da rota 2016, a degustar com vinho Alvarinho. Rainha das ementas nos próximos dois meses, a lampreia conta entre os seus confrades de ocasião o restaurante Cabral, casa rústica de sabores regionais no coração de Monção, o Bom Jesus, cozinha de valor seguro no centro histórico de Valença. Na vizinha Pousada de São Teotónio, fevereiro é dedicado à lampreia, prato ex libris do mês também nas restantes pousadas de Portugal do norte, da Caniçada-Gerês à da Ria-Torreira. Em Esposende, no cozinha apurada do chefe Ivo Loureiro convivem sem rivalizar os pratos de lampreia mais clássicos com outros mais alternativos, como a feijoada de lampreia ou assada no forno com batata nova. “É bastante requisitado por ser menos gordo e pesado”, refere Ivo, a servir lampreia desde 1 de janeiro, dia em que a capitania local levanta o embargo da pesca ao ciclóstomo, proibida de maio a dezembro para proteger a reprodução.

Para quê inventar?

Para quem quiser ficar pelo Grande Porto, não será por falta de oferta que não matará saudades do bicho capturado também no Douro, no Mondego, no Sado e no Tejo. Em Valbom, Gondomar, a fama da Casa Lindo perdura há 35 anos, gerida pela quinta geração da família com mais de um século a trabalhar na restauração. Na cozinha manda Gracinda, a dona da casa, de 63 anos, que aprendeu a amanhar lampreia com a avó. “A receita já era do tempo da bisavó. Para quê inventar?”, questiona o filho Pedro, que se escusa a revelar a forma como é confecionada. A bordalesa é a campeã deste restaurante tradicional, debruçado sobre o Douro, servida, como sempre, com tostas e arroz branco. A pedido, de preferência por marcação, também se serve arroz de lampreia e açorda de entrada. Em média, uma lampreia custa €100 e “dá para quatro pessoas, três se for gente de muito apetite”.

Em Matosinhos, terra de peixe e capital da grelha do norte, um dos templos históricos da lampreia é o restaurante O Gaveto, fundado há três décadas por Manuel Pinheiro, anfitrião do espaço (titulado “Oceans Heaven” numa reportagem do “Financial Times” em 2012, ano do boom da era turística do Porto). Agora, com os filhos João Carlos e José Manuel ao leme do restaurante com capacidade para 60 pessoas, a tradição ainda é o que era, debutando a lampreia na mesa de O Gaveto a 1 de janeiro, confecionada com reverência pelo chefe Humberto Alonso. A especialidade da casa é lampreia à bordalesa, que vai a estufar após repousar na usual marinada, aqui com a subtileza da fusão de vinhos tinto maduro e verde. Manuel Pinheiro confidencia que o segredo para se gostar de lampreia reside na forma como é temperada e cozinhada: “Bem feita é um manjar dos deuses, mal feita uma coisa horrível.” A aversão ao sangue é outro dos motivos da resistência à iguaria. “Quem não gosta de cabidela de frango, também não gosta de certeza desta cabidela sem ossos”, brinca José Manuel, que tal como o irmão desvenda outra das razões que ajudam a explicar as romarias de grupos de fiéis que rumam a Matosinhos vindos do sul do país, de Madrid e da Galiza. “A bordalesa tem de ser servida em prato aquecido para não alterar a espessura do molho. Aqui, trocamos o prato de cada vez que o cliente repete”, diz João Carlos. O preço da lampreia ronda os €90, para três ou quatro pessoas dependendo da voracidade da boca. No caso do arroz de lampreia, recomenda-se pré-aviso, para evitar espera de 45 minutos, o tempo da confeção. Para regar, o melhor é o vinhão, mas os irmãos também recomendam espumante ou vinho maduro, “desde que não seja marcado por madeira”.
No Porto, junto à Ponte da Arrábida, o restaurante Morfeu Marginal, após ter descido das Condominhas há 10 anos, é outra das paragens obrigatórias dos convertidos à lampreia à bordalesa, cozinhada a pedido pelo chefe Paulo, e “o mais natural possível”. Para comer indoor ou levar para casa.

Texto de Isabel Paulo | Jornal Expresso - edição de 30.01.2016