Últimas Notícias

ENTREVISTA - No Dia do Médico, Carlos Cortes dá entrevista ao Diário As Beiras

Hoje comemora-se o Dia do Médico e o presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes lamenta as dificuldades e carências que os profissionais enfrentam nos serviços de saúde

O Dia do Médico é uma oportunidade para refletir?

Sim, mas é também uma oportunidade para agradecer aos colegas homenageados por todo o conhecimento que acumularam e transmitiram e pela forma como conseguiram viabilizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). É um dia de reflexão dos próprios médicos sobre os seus problemas do dia-a-dia, mas também sobre os problemas atuais do setor da saúde e o seu papel na sua resolução. Há um aspeto que me preocupa, e que iremos aprofundar, que é saber qual é a identidade do médico hoje no sistema de saúde e na sociedade, que desafios enfrenta. Sabemos que é um papel diferente do que era há apenas meia dúzia de anos atrás. A somar à evolução tecnológica e científica da medicina, temos hoje novas responsabilidades e todos os constrangimentos do sistema de saúde.

Os médicos enfrentam novos problemas?

Este ano o Dia do Médico é celebrado numa altura interessante, porque brevemente iremos apresentar um estudo inédito em Portugal, realizado na Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, sobre a Síndrome de Burnout. Dos cerca de oito mil médicos que existem no Centro responderam a este estudo à volta de dois mil, a maior amostra de sempre neste tipo de trabalho. Este estudo insere-se na atividade do nosso Gabinete de Apoio ao Médico, que tem procurado detetar e resolver, e também prevenir, vários problemas que atingem os médicos. E está também a ser feito um estudo a nível nacional sobre a prevalência da Síndrome de Burnout, mas um pouco diferente.

A Síndrome de Burnout exige uma intervenção específica junto dos médicos?

Sim. E o estudo feito no Centro tem duas vertentes: faz o levantamento do problema, mas procura mecanismos para o tratar e prevenir. Para isso temos um protocolo com o Centro de Prevenção e Tratamento do Trauma Psicogénico, do CHUC, coordenado pelo psiquiatra João Redondo, que nos tem dado um apoio muito importante. Quando nos candidatámos à SRC falámos neste problema, mas só depois é que nos apercebemos do impacto da Síndrome de Burnout. E apercebemo-nos porque a metodologia do estudo tem duas partes: a primeira incluiu uma reunião nos locais de trabalho, para sensibilizar os médicos, e a segunda foi o inquérito. E a experiência que tive ao ir aos hospitais e centros de saúde foi única, porque tivemos reuniões com grande carga emocional. Sente-se o sofrimento dos médicos e inclusive muitos contaram que não reconheceram que estavam doentes, achavam que era só uma fase de excesso de trabalho.

A que se deve o burnout entre os médicos?

Este problema deve-se sobretudo às alterações muito rápidas que foram introduzidas no setor da saúde, muitas delas fruto de decisões incorretas. Existe neste momento uma pressão muito grande sobre os médicos. O que o Ministério da Saúde pede aos médicos são números, de consultas, de cirurgias, de sessões do hospital de dia, e por vezes a preocupação com a qualidade acaba por ter muito pouco espaço. Isso colide com aquilo que os médicos sempre aprenderam, que foi prestar cuidados de saúde com qualidade, com tempo, privilegiando a relação com o seu doente. E no seu dia-a-dia percebem que o mais difícil não é propriamente diagnosticar e encontrar a estratégia terapêutica certa, mas ter à sua disposição os meios para tratar os seus doentes, que deveria ser o mais fácil. Isso tem implicações psicológicas e alguns médicos acabam por ficar exaustos.

Também há casos de violência contra os médicos no local de trabalho?

A violência contra os profissionais de saúde no seu local de trabalho é outro problema que me tem sido reportado e que também está a ser seguido pelo nosso Gabinete de Apoio ao Médico. Para um médico tratar bem o seu doente tem que estar bem e uma das funções da Ordem é a defesa das melhores condições de trabalho, para garantir uma boa prestação de cuidados de saúde. E nestas áreas estamos a trabalhar com outras ordens profissionais, porque estes problemas não afetam só os médicos, mas todos os profissionais de saúde.

Que meios faltam nas unidades de saúde do SNS?

Há falta de muita coisa. Em primeiro lugar há uma grave falta de recursos humanos: faltam médicos, mas também faltam enfermeiros, assistentes técnicos e assistentes operacionais. Há outro problema, menos falado, que é o envelhecimento do parque tecnológico da saúde, que me tem sido referido em vários hospitais. As instalações e os equipamentos têm que ser mantidos e renovados, porque ficam velhos ou obsoletos, e isso não está a ser feito. Também tem faltado manutenção das instalações dos centros de saúde, algumas das quais são indignas para os doentes e profissionais de saúde que lá trabalham. O direito à saúde também é acompanharmos a evolução científica e tecnológica. E esse direito, de os doentes terem acesso àquilo que naquele momento há de melhor para tratar a sua doença ou preservar a sua saúde, está consagrado em Portugal.

Podemos vir a ter unidades de saúde obsoletas?

Absolutamente. A maioria dos nossos hospitais são do milénio passado e em muitos deles não está a haver renovação tecnológica. Outro problema que insisto em denunciar é a falta de medicamentos nas instituições do SNS.

Está a falar dos medicamentos inovadores?

Não, estou a falar de medicamentos de primeira linha, absolutamente essenciais, que faltam nas unidades de saúde e são criadas muitas barreiras que dificultam o acesso a estes fármacos. Isto é público, ainda há pouco tempo todos os diretores de serviço do hospital do Funchal se demitiram devido à falta de medicamentos. E não me recordo de ter ido a um centro de saúde e não ter ouvido esta queixa. O que acontece é que há doentes que poderiam ser tratados no centro de saúde, mas como não há esta medicação, simples, eles têm que ser transferidos para o hospital. Muitas vezes os responsáveis do Ministério da Saúde dizem que a falta de medicamentos se deve a questões burocráticas, é porque não são pedidos, mas isso não é verdade.

Estas situações pioram a eficiência do SNS?

Claro. É muito fácil dizer que os centros de saúde vão abrir até às 22H00, até podiam estar abertos 24 horas por dia, mas se não têm lá os meios para tratar os doentes não vale a pena, porque depois eles têm que ser encaminhados, de ambulância, para o hospital. E numa próxima vez este doente já não irá ao centro de saúde, mas diretamente para a urgência do hospital. A Ordem dos Médicos, nesta e noutras questões, tem uma atitude de querer ajudar, colaborar com a tutela. Enviámos para o Ministério da Saúde, com conhecimento da ARSC, uma lista de várias situações onde havia falta de medicamentos simples, e tenho pena que não aproveitem os nossos contributos para resolver estes problemas.

A qualidade da formação médica é uma preocupação atual da Ordem?

Enquanto não houver boas instalações, uma solução para a falta de recursos humanos, meios tecnológicos e farmacológicos adequados e um sistema informático a funcionar nos centros de saúde e nos hospitais não podemos ter a mesma qualidade na formação médica. E depois o Ministério da Saúde surpreende-se por haver dificuldades na formação médica. E essa é uma grande responsabilidade da Ordem, que é avaliar a capacidade formativa dos serviços pela qualidade. A Ordem é sensível às dificuldades do país, ela própria pressiona os serviços a corrigirem muitas deficiências em termos formativos, mas o ministério tem que fazer o seu trabalho e preocupar-se com a qualidade e a qualidade da formação dos médicos, que terá impacto na saúde nos próximos anos.

A Ordem dos Médicos do Centro tem realizado muitas visitas, para conhecer os problemas dos centros de saúde e hospitais da região?

O nosso trabalho tem sido feito fundamentalmente pelo prisma do que é melhor para o doente. Obviamente defendemos os médicos, na justa medida em que a classe médica tem como principal objetivo a qualidade da saúde e defender os seus doentes. Percebemos, na Ordem, que era preciso ir aos locais para conhecermos as realidades. E isso provavelmente foi das coisas mais gratificantes que tive na Ordem, conhecer as realidades e os problemas, muitas vezes na primeira pessoa, com os médicos que estão no centro de saúde. Isso tem-nos permitido ter uma intervenção muito importante nos locais onde detetámos problemas graves, fazendo uma denúncia pública dessas situações. E falamos publicamente porque a tutela, nestes últimos anos, tem-se preocupado mais com o que aparece na comunicação social do que com os ofícios que enviamos.

E os problemas têm sido resolvidos?

Isso tem permitido que muitos desses problemas se resolvam. Passado um tempo repetimos a visita e se não estiverem resolvidos voltamos a insistir. Mas os ofícios que enviamos já começam a ter algum impacto, já há uma postura diferente, o que demonstra que hoje a Secção Regional do Centro é reconhecida de outra forma, mesmo pela sociedade civil. É uma instituição mais conhecida neste papel de provedora do doente, mais respeitada pelo trabalho que tem feito. Nós recebemos muitas cartas de doentes que nos pedem ajuda, várias por semana, e todas são encaminhamos para resolução e ajudamos no que podemos.

A Secção Regional do Centro está preocupada com os médicos que emigram?

Sim, criámos o Gabinete de Apoio ao Médico Residente no Estrangeiro, que é inédito em Portugal. Tem três vertentes: dar apoio a quem já tomou a decisão de emigrar; manter os médicos no estrangeiro sempre informados sobre a Ordem e o seu país; e fomentar o seu regresso, pressionando o Ministério da Saúde a recorrer a esses médicos e não só aos aposentados e estrangeiros. Mais de um milhar de médicos emigraram nos últimos três anos. Hoje é mais difícil contratar um médico português em Portugal do que ele ser contratado no estrangeiro. Tenho relatos de colegas que acabam o internato em especialidades altamente diferenciadas, o diretor do serviço e o hospital querem que ele fique, porque faz falta, mas as autorizações para o contratar são tão dificultadas pela tutela que ele acaba por desistir. Isto não faz sentido num país que tem carências de médicos em algumas áreas geográficas e em algumas especialidades.

Como avalia a nova equipa ministerial?

O novo Ministério da Saúde, que está em funções há seis meses, é de boas intenções, mas falta a atuação. Gostaria de ver concretizadas muitas das intenções, até porque toda esta equipa ministerial veio da área da saúde, conhece o setor. E houve um mau sinal: é verdade que o país continua a sofrer os efeitos da crise económica global, há pouco dinheiro, mas a saúde continua a não ser uma prioridade no Orçamento do Estado. Bem pelo contrário, alguns dos seus altos dirigentes já disseram que o ministério tem que ajudar no esforço de contenção. Eu concordo, mas acho que, por exemplo, há um subfinanciamento das unidades de saúde. Sem financiamento adequado não pode haver melhorias no SNS e a minha conceção é que estas áreas sociais são ainda mais necessárias quando o país está em crise.

Coimbra recebeu este mês dois encontros internacionais de ordens dos médicos...

Coimbra recebeu este mês, de forma inédita, a reunião do Fórum Iberoamericano de Entidades Médicas (FIEM) e a reunião plenária do Conselho Europeu das Ordens Médicas (CEOM), esta última realizada pela primeira vez em Portugal, o que reconhece a importância de Coimbra e o trabalho da Secção Regional do Centro. Não é por acaso que só se fala de um projeto de Capital de Saúde em relação a Coimbra, o que significa que as pessoas têm uma ideia da cidade como um polo importante da saúde em Portugal. Temos muitas potencialidades, só precisamos de as juntar, e a Ordem, a par de outras entidades, quer trabalhar para que isso aconteça.

Nessas reuniões foi aprovada a Declaração de Coimbra?

As 12 delegações que participaram no FIEM aprovaram a Declaração de Coimbra. Neste documento os médicos defendem que a relação médico-doente deve ser reconhecida como património imaterial da Humanidade e essa proposta deverá ser formalizada junto da UNESCO. Há uma nova medicina, mas esta relação é algo imprescindível para o êxito da terapêutica e os médicos nunca vão poder deixar de a ter na sua atividade profissional. Na declaração os médicos afirmam-se também contra a medicalização da vida e a publicidade enganosa por parte das empresas farmacêuticas e defendem uma política comum de medicamentos na Europa e na América Latina, entre outros pontos importantes. Declararam ainda que os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro não devem ser adiados por causa do vírus Zika.

Texto de Dora Loureio e foto de Luís Carregã - Diário As Beiras