OPINIÃO - Marta Soares, o incendiário
Há um ano, por esta altura, o país ainda chorava a morte
de mais de cem pessoas nos incêndios de 2017. Há um ano, por esta altura,
Presidente da República, primeiro-ministro, ministros e líderes da oposição
caminhavam para o interior de um país que não tinha sido apenas consumido pelas
chamas, tinha sido consumido pelo desespero. Afinal, por ali, quem esperou não
desesperou. Quem esperou morreu da espera.
Prometeu-se muita coisa àquela gente e ao país inteiro que
assistiu chocado às insuficiências de um Estado fraco e incapaz. Prometeram-se
casas, subsídios, donativos, apoio moral e psicológico. Mas prometeu-se,
sobretudo, memória e respeito pelas vítimas - as que morreram e as que ainda
vivem.
Mais de um ano depois, continuamos todos à espera da tão
prometida reforma da floresta, mas o governo tem finalmente pronta a nova lei
orgânica para a Proteção Civil. Adivinhem quem é que não gostou? O nosso velho
conhecido Jaime Marta Soares. E porquê? Porque os bombeiros perdem poder. Sim,
isso mesmo, perdem poder na estrutura hierárquica e isso é inaceitável para o
eterno presidente da Liga.
Na sua condição de ministro da Administração Interna
frustrado, Marta Soares decidiu mostrar ao governo quem manda. Primeiro,
convocou os bombeiros para uma manifestação ridícula no Terreiro do Paço.
Ridícula pelos motivos que a fundamentaram mas, sobretudo, pela triste figura
que o presidente da Liga "obrigou" os bombeiros a fazer. Quando achou
que o país não lhe estava a prestar atenção suficiente, ainda ensaiou o número
de atirar com umas grades, só para criar algum frisson. Sempre lhe rendeu uma
"última hora" e mais uns quantos diretos nas televisões.
Como não surtiu efeito, Marta Soares decidiu tomar medidas
mais drásticas e o passo seguinte foi ordenar às corporações de bombeiros que
deixassem de reportar aos comandos distritais. Que se lixe a segurança e a vida
das pessoas. A guerra pelo poder de Jaime Marta Soares é muito mais importante.
O nível de irresponsabilidade é tão grande e tão grave que espero que um dia
Marta Soares tenha de responder por isto em tribunal.
Felizmente, há nos bombeiros portugueses gente muito mais
sensata e responsável do que Jaime Marta Soares. Várias corporações decidiram
ignorar a ordem do presidente da Liga, que, ainda assim, conseguiu uma adesão
significativa a este dislate.
Não queria estar na pele de Eduardo Cabrita ou de qualquer
pessoa que tenha de discutir e negociar com Marta Soares. Quando o melhor
argumento para não se gostar de uma lei é o medo de perder poder, estamos
conversados sobre o que verdadeiramente interessa ao presidente da Liga dos
Bombeiros. Quando mais importante do que uma vida é alimentar o monstro do
corporativismo, está tudo dito do interesse que há em corrigir os problemas de
coordenação e comando na Proteção Civil. Mas alguém tem de negociar com Marta
Soares, e esse alguém é o ministro.
Eu não sei se a nova lei orgânica é boa ou má. Se está bem
feita ou mal feita. Mas sei que, por muito boa que seja, ela não vai resolver
rigorosamente nada se os vários responsáveis não tiverem bom senso. Sei que o
país precisa dos bombeiros mais empenhados em salvar vidas do que em chegar a
cargos de poder. Sei, também, que um Estado forte não se deixa manietar por
corporações. Ouve, negoceia, decide, aplica a lei e responde por ela, para o
bem e para o mal.
Esteve bem o Presidente da República quando aconselhou as
duas partes a diminuir o tom verbal e a sentarem-se à mesa para negociar. Mas
suspeito que, enquanto os bombeiros continuarem a ter Jaime Marta Soares a
representá-los, haverá sempre mais ruído do que soluções. Afinal, sem acender
um fósforo, ele consegue ser um dos maiores incendiários do país.
"Nada será como antes", foi-nos repetido vezes
sem conta. A nós e a elas, às vítimas maiores da tragédia que, um ano depois,
continuam sem ver cumprida a mais importante de todas as promessas: respeito.
Anselmo Crespo - subdiretor da TSF
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