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REFLEXÕES - Roupa lavada e alma lavada (Lavadeiras do rio Alva)

Julho de 1955 - Amanhecia calmamente, enquanto os primeiros raios de sol espreitavam de mansinho por trás das montanhas lá ao fundo. A paisagem começava a clarear e a noite a desvanecer-se levemente, enquanto a aldeia permanecia ainda adormecida. Tudo estava sossegado, o silêncio enchia cada canto e esquina, apenas interrompido pelo chilrear de uns quantos pássaros que anunciavam a luz do dia. Era uma manhã de verão, mas àquela hora a frescura mal fazia adivinhar o calor insuportável que viria abafar o dia. Estava na hora. Tinham de se pôr ao caminho, para aproveitarem a brisa e o fresco matinal.
Lavadeiras - Penacova - Coimbra - Portugal Colecção Portuguesa inteiro postal n.º 9

Maria tinha já a sua trouxa pronta. Na véspera, desfizera os seus colchões, que eram cheios de palha, e tirou os panos que os forravam. Recolheu também alguns lençóis, cobertores e roupa, enfiando tudo dentro de um grande alguidar. Para o almoço, levava a sua humilde cestinha de verga, com um bocado de broa de milho cozida recentemente, amassada por si e pela sua irmã, com os seus braços cansados e as mãos calejadas, fruto da dura vida no campo, mas os seus corações eram quentes e permitia-lhes ainda ter forças para fazer frente às exigências da vida (e para cozer a broa, ora pois, que tinham uma família para alimentar). Calos nas mãos, mas amor no coração! Levava ainda algumas azeitonas para acompanhar, também vindas do seu quintal e apanhadas por si e por uns quantos familiares que a iam ajudar nesse tempo de apanhá-la. E o vinho! Esse não podia faltar. Caseiro, pois claro… Das suas uvas, podadas e apanhadas também no seu quintal. Pisadas por si e pelos mesmos familiares, que nestas coisas a família vem sempre ajudar… E merendar. E depois, também até levam sempre qualquer coisita (ou uma broa, ou um bocado de azeite e vinho, para agradecer pela ajuda). Levava também, na sua cestinha de verga, uma sardinha para assar. E que bem que lhe ia saber o almoço, depois de tanto esfregar.

Esperava à sua porta, de alguidar já na cabeça, apoiado numa rodilha, e descalça. Cabelo entrançado e com um lenço atado junto à nuca. Saia pelos joelhos, que ela própria fizera, e blusa de manga curta abotada até cima, que o seu Manel não gostava de outra forma. Casaco por cima, a aconchegá-la da brisa matinal, mas que por certo, daí a nada com o calor que se aproximava, já o iria tirar. Aguardava as suas comadres, de mão à cinta, de tão impaciente que estava. Era o dia de irem ao rio lavar. De esfregar aquela sujeira toda dos cobertores e das forras dos colchões, de pôr os lençóis e a roupa a brilhar… E a cheirar bem, ao sabão azul, que tão arduamente esfregavam. Tinham de aproveitar a frescura da manhã para descerem até ao Alva, porque o caminho ainda era longo.

Perdida nos seus pensamentos e inquietações, Maria lá começou a ouvir um burburinho vindo do fundo da rua. Estariam as restantes mulheres quase a cruzar a esquina… Ouviam-se gargalhadas e vozes a falar alto. Apesar de duro, era um dia bastante alegre, pois juntavam-se todas, punham a conversa em dia, coscuvilham as novidades fresquinhas da aldeia, contavam anedotas e, ao mesmo tempo, labutavam contra o peso dos cobertores, mais umas torcedelas nos lençóis e nas ceroulas e mais umas quantas esfregadelas.

Finalmente, lá se juntaram todas e Maria logo se pôs a andar, que tinha muito que lavar. Seguiam, cada uma com o seu alguidar e farnel, descalças, ladeira abaixo, em direção ao Alva. E já se fazia tarde. Olhem que o tempo não espera. E o calor também não. Depois da conversa animada pelo caminho, e de uns quantos paus e pedras pisados que massacravam os pés, lá chegavam ao rio. Ao aproximarem-se, começavam a ouvir o som da água a correr bem depressa e o barulho persistente das rãs. Apressavam-se logo a meter a roupa toda mergulhada em água e bastante sabão nos alguidares e deixavam-na assim estar um pouco, para amolecer. Enquanto esperavam, sentadas nas pedras junto à margem do rio, lá trocavam mais dois dedos de conversa. Ali lavavam a roupa e lavavam a alma. Aproveitavam para desafogar as mágoas que o dia-a-dia lhes impunha. Aliviam, um pouco, o peso que carregavam aos ombros… As inquietudes com os maridos e filhos, a vida no campo, o dinheiro que era pouco e mal sobrava para a comida... Enquanto a água corria, rio abaixo, também lhes corria, por vezes, às lágrimas pela face. Mas havia trabalho a fazer e não podiam esperar. A tristeza era posta de lado e voltavam a dedicar-se à roupa, dando lugar novamente a conversas animadas e cantorias. Viver um dia de cada vez, era o que tinham de fazer… Com força e bastante determinação.

Lá tiravam peça por peça e toca a esfregar, cada uma na sua pedra, dentro da água fria do Alva. Os dedos às vezes a arder de tanto roçar nas roupas, lençóis e cobertores, mas a vontade e persistência eram mais fortes e, afinal, a roupa tinha de ficar bem lavada, porque não podiam caminhar para o rio todos os dias e os cobertores só se lavavam uma vez por ano. Depois da roupa bem esfregada e passada na corrente que se esgueirava rápida, mas compassivamente, metiam-lhe um pouco mais de sabão e deixavam-na a corar ao sol. Estava, então, na hora de juntarem uns pauzitos e fazerem uma fogueira, para assarem as suas sardinhas. E, depois, almoçavam… E lá se sentavam debaixo de um amieiro à sombra, até retomarem o trabalho e irem a apanhar a roupa, passando-a pela água limpa e torcendo-a, para a colocarem novamente nos alguidares.

Por fim, carregavam-nos novamente à cabeça, no final da tarde, para subir a ladeira até lá cima, à sua aldeia. Roupa lavada e alma lavada… Lá iam todas juntas, por entre risadas, com a coragem para enfrentar mais uma jornada.

Mariana Assunção

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