SAÚDE - Privados e ADSE não se entendem nos preços
Impera a falta de transparência nas negociações das novas tabelas de preços para o regime convencionado
Ana Sofia Santos - Jornal Expresso
Quase um ano depois de ter estalado a ‘guerra’ entre os
grupos hospitalares privados e a ADSE, subsistema de saúde dos funcionários
públicos, ainda não há novas tabelas de preços para o regime convencionado.
Esta é um das batatas quentes herdadas pela ministra Alexandra Leitão, fruto da
mudança da tutela da ADSE para o Ministério da Modernização do Estado e da
Administração Pública.
Terminou a 15 de novembro o prazo para os prestadores se
pronunciarem sobre as propostas de revisão de preços da ADSE — alguns
fizeram-no, outros enviaram considerações genéricas e houve quem não dissesse
nada —, num processo com muitas pedras na engrenagem e sem entendimento à
vista. Em fevereiro — em plena polémica com as ameaças dos maiores prestadores
de ‘rasgarem’ as convenções perante os milhões de euros de acertos de contas
que lhes foram exigidos pelo organismo público —, a presidente do conselho
diretivo da ADSE, Sofia Portela, prometeu para breve a revisão dos preços, mas
demorou largos meses até que, no final de agosto, as propostas começarem a ser
apresentadas. Nem todos os privados as receberam e até há um acordo ‘secreto’,
para apaziguar os ânimos, entre a ADSE e os cinco maiores grupos hospitalares —
José de Mello Saúde, Luz Saúde, Lusíadas
Saúde, Grupo Trofa Saúde e Grupo Hospital Particular do Algarve —, com
cláusulas de confidencialidade que os impede de falarem sobre as negociações. O
Expresso apurou que o memorando vigorará até ao final do ano, altura em que uma
parte importante das tabelas devia estar fechada, mas ninguém acredita que o
dossiê fique, entretanto, arrumado.
Ao impasse, soma-se o facto de os membros do conselho
diretivo da ADSE se terem desavindo, no meio do processo, com Eugénio Rosa,
eleito pelos representantes dos beneficiários, a denunciar que os dois outros
elementos, aproveitando as suas férias, forneceram aos grupos hospitalares
propostas de tabelas distintas das que lhe haviam sido entregues anteriormente.
Um ato de “deslealdade” que o economista já ultrapassou porque, agora, está “com o restante conselho diretivo em relação
às tabelas”, diz ao Expresso, pois importa fixar os preços dos
procedimentos cirúrgicos, das próteses e dos medicamentos, para se acabar com
as regularizações retroativas da faturação, em acertos de contas que provocam
tensão e conflitos (ver caixa).
Os prestadores estão descontentes e apontam que há preços “impraticáveis” nesta revisão. A ADSE
estará a impor reduções entre 10% a 15% dos valores atuais, colocando-os ao
nível das tabelas do sector social em que os preços pagos são 15% menores
(porque têm menos custos de operação, nomeadamente via isenção de impostos). “Isto descredibiliza as propostas da ADSE”,
refere ao Expresso uma fonte do sector.
Para Rui Riso, presidente do Sindicato dos Bancários do Sul
e ilhas e do SAMS — Prestação Integrada de Cuidados de Saúde, “a ADSE está a abusar de uma posição
dominante no mercado — consultas a €3,99 para os beneficiários não faz sentido
nenhum! A ADSE exige-nos preços impraticáveis e se não tivermos vantagem não
podemos aceitar face aos custos que temos em tecnologia e serviços”. Para o
responsável, caso a ADSE continue a fazer pressão “fica sem fornecedores” e quem acaba prejudicado são os 1,2 milhões
de beneficiários. Frisa que o SAMS não pode fornecer a ADSE “com prejuízo dos
próprios beneficiários e do nosso subsistema”. “Temos 30% a 35% de clientes externos, que não são quadros bancários, e
a ADSE representa 20%, o que corresponde a 10% da faturação total”, revela
Rui Riso, reconhecendo que “a ADSE é
importante porque nos mantém ocupados, caso contrário, teria de reduzir o
número de profissionais”. “Estamos a
fazer contas aos custos e os preços que nos pagam, bem como ao número de atos
por ano, para vermos o que continuaremos a fornecer e o que não será possível
fazer”, conclui o sindicalista.
Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias
Portuguesas, confirma que estão “a participar nas negociações sobre as
tabelas”. E refere, tal como Rui Riso, que “há preços impraticáveis, se já não davam para os privados muito menos
para nós com menos 15%, mas na generalidade concordamos com as propostas”.
Outra questão importante para as Misericórdias é a celebração de mais acordos
com as suas unidades em zonas em que os beneficiários não estão bem servidos. “Há um protocolo para futuras convenções e,
em dois anos, apenas um contrato foi assinado!”, aponta Manuel de Lemos.
A MÃO DAS FINANÇAS
Eugénio Rosa e João Proença, presidente do conselho geral e
de supervisão da ADSE, garantem que as propostas das novas tabelas são da lavra
do Ministério das Finanças, mais especificamente do gabinete do Orçamento. “Quem centralizou as tabelas foi a Maria
Eugénia Pires [veio do Ministério da Saúde e antes esteve no Ministério das
Finanças], que está no conselho diretivo em representação do Governo”,
especifica Eugénio Rosa.
Por outro lado, haverá tratamento desigual entre pequenos e
grandes prestadores. O presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização
Privada (APHP), Óscar Gaspar, teve informação de que nem todos os privados com
convenções receberam as propostas de preços. Vários associados questionaram
sobre quais os critérios da ADSE “para
remeter os documentos a apenas alguns operadores”, conta o dirigente e
garante que a ADSE não entregou à APHP nem à Federação Nacional de Prestadores
de Cuidados de Saúde (FNS) as tabelas e que, por isso, “não nos pronunciamos sobre o que não conhecemos”.
A APHP defende que é “urgente”
a adoção de novas tabelas com “regras
claras e não discriminatórias e que contribuam para reforçar a relação de
parceria entre o subsistema de saúde e os prestadores privados”. Pede ainda
uma atualização da classificação dos diferentes atos médicos, que considere a
complexidade dos procedimentos e que “assegure
que todos os prestadores são tratados de forma equitativa”.
Conselho diretivo da ADSE esteve de costas voltadas durante a definição dos valores que foram propostos aos prestadores
Sobre como irão atuar os privados num cenário de imposição
pela ADSE das tabelas propostas — cumprindo o decreto-lei de execução
orçamental de 2018, que define metodologias para a adoção de valores máximos
nos códigos abertos (sem preço definido) —, Óscar Gaspar remete a resposta para
cada um dos prestadores. Porém sublinha que esta revisão deve servir “para ultrapassar problemas na tabela atual
— desatualização de nomenclaturas, atos não contemplados, cláusulas não
adequadas como as ditas regularizações — e não, necessariamente, para uma
redução de preços”, lembrando que no recente relatório de auditoria do
Tribunal de Contas sobre a ADSE está claro “que a sustentabilidade do sistema não passa por corte cegos”.
Quando ao memorando entre a ADSE e os grandes grupos, Óscar
Gaspar afirma que “a APHP não foi parte
de nenhum documento que tenha sido assinado entre a ADSE e algum prestador
privado”. Segundo Eugénio Rosa o acordo foi celebrado em julho como
compromisso da ADSE de que as tabelas seriam revistas e atualizadas, tendo em
conta as ameaças dos maiores prestadores de suspensão dos acordos. Implica não
só cláusulas de confidencialidade, mas também muda as regras para as
regularizações que serão mais vantajosas. “Nesta
fase de audição, para os cinco prestadores que assinaram o memorando as regras
de regularizações são diferentes das que vigoraram antes do processo para
negociação das novas tabelas de preços e também são distintas daquelas que se
aplicam aos prestadores que não fizeram parte do memorando, criando uma
situação de desigualdade”, explica Eugénio Rosa, acrescentando que o acordo
teve como objetivo acelerar a conclusão das novas tabelas.
O que não está a acontecer sinaliza João Proença. “O conselho diretivo fez disso um segredo”,
refere, sublinhando que, ao haver condições diferentes nas regularizações, “os prestadores têm interesse em arrastar as
negociações”.
Entre os grandes grupos privados impera o silêncio, bem como
do lado da ADSE e dos ministérios da Saúde (fonte oficial diz apenas que estes
assuntos estavam a ser analisados) e das Finanças, dos quais dependia o
subsistema antes da mudança de tutela.
ANTECEDENTES
UMA CRISE ANUNCIADA
A promessa de atualização dos preços pagos pelos atos e
produtos fornecidos aos beneficiários da ADSE pelos privados, ao abrigo do
regime convencionado, conteve a crise desencadeada no final de 2018 — depois de
um agudizar de tensões — e que se prolongou pelos primeiros meses deste ano.
Faltou pouco para os maiores prestadores de cuidados de saúde rasgarem os
acordos com o organismo público. A gota de água foi o processo de
regularizações relativas a 2015 e 2016, com a ADSE a apurar uma faturação em
excesso de quase €38 milhões e a exigir esse valor aos privados, que puseram o
caso em tribunal. Entretanto, há outros €21 milhões de alegados acertos, dos
anos 2017 e 2018, segundo as contas do ano passado da ADSE. Sobre o processo judicial
que corre por causa das regularizações, Óscar Gaspar, presidente da Associação
Portuguesa de Hospitalização Privada, refere que se “mantém a correr”. E adianta que não houve resposta da ADSE aos
operadores relativamente à audiência prévia sobre os acertos de contas de 2015
e 2016, “em que tínhamos detetado erros grosseiros, como preços abaixo do valor
de custo”. Eugénio Rosa, membro da direção da ADSE eleito pelos representantes
dos beneficiários confirma que “as
regularizações estão paradas”. Na origem destes acertos está a existência
de preços abertos (não estão definidos), com os prestadores a cobrarem o que
entendem, cabendo depois à ADSE ‘corrigir’ os valores tendo como baliza os
preços mais baixos que lhe foram faturados. Permanecem sem preço fixo os custos
com medicamentos, exceto oncológicos, dispositivos médicos, exceto lentes
intraoculares, e os consumos em sala cirúrgica (quando o procedimento não está
incluído).
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