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SAÚDE - Exames em excesso ‘adoecem’ população



Programa internacional define quais são as práticas médicas comprovadamente fúteis. Peritos avisam: tecnologia está a impor cuidados a quem não está doente

Texto de Vera Lúcia Arreigoso Ilustração Paulo Buchino 

ADIAR VACINA DEVIDO A FEBRE
Não ser vacinado em situações de doença aguda ligeira, com ou sem febre, ou de convalescença “pode ser uma oportunidade perdida” de fazer a proteção. Segundo os especialistas da Ordem dos Médicos (OM), “as doenças agudas ligeiras, como infeções respiratórias das vias aéreas superiores não complicadas, são falsas contraindicações para a toma de vacinas”.

DENTÍFRICOS SEM FLÚOR
A pasta de dentes com fluoretos interrompe a desmineralização do esmalte causada por ácidos provenientes do metabolismo bacteriano e reforça a remineralização. O benefício anticárie começa com a erupção do primeiro dente e nas quantidades recomendadas para a idade minimiza o risco de descoloração esbranquiçada do esmalte e não tem perigo de intoxicação como é por vezes erradamente defendido.

PAPANICOLAU ANUAL
O rastreio do cancro do colo do útero visa reduzir a incidência e mortalidade e a infeção persistente pelo vírus do papiloma humano (HPV) é condição necessária para o desenvolvimento de cancro, cinco a 20 anos após a presença do vírus. Nas mulheres entre 20 e 24 anos, o exame apresenta pouco efeito sobre a incidência do cancro e a orientação europeia em situações normais é para a realização de citologia a cada três anos nas mulheres dos 25 aos 65 anos, uma vez que intervalos mais curtos não têm benefício na diminuição da mortalidade. No entanto, deve ser realizada uma consulta ginecológica anual para identificar eventuais casos de risco.

PRIVILEGIAR MAMOGRAFIA EM VEZ DE ECOGRAFIA MAMÁRIA
Muitos cancros não têm tradução na ecografia e algumas formas precoces estão associadas a microcalcificações que só são visíveis na mamografia, pelo que é um exame essencial. Além disso, muitos dos achados detetados como suspeitos na ecografia e que requerem biopsia não são cancros.

SEGUIMENTO ECOGRÁFICO DE QUISTOS SEM RISCO
Os tumores do ovário, embora classicamente associados a massas nesta área, não resultam destes quistos de características benignas. Uma ecografia de qualidade em mulheres em idade reprodutiva dispensa o seguimento quando o quisto simples tem menos de cinco centímetros ou menos de um centímetro no pós-menopausa.

CHECK-UP TODOS OS ANOS
Entre os adultos portugueses, 99,2% acreditam que devem fazer exames de rotina ao sangue e à urina com uma periodicidade anual e 87,4% realizam esses exames. Mas em adultos assintomáticos, sem fatores de risco, este é um procedimento que não reduz a morbilidade ou a mortalidade em geral, por doença cardiovascular ou por cancro. Ao invés, o check-up pode ter “danos não-intencionais” para o utente. A evidência disponível demonstra que a realização de exames de forma indiscriminada conduz a falsos positivos que podem gerar uma sequência de testes desnecessários. A decisão de efetuar testes laboratoriais de rastreio, assim como a escolha dos exames a fazer deve ser baseada na idade, sexo e fatores de risco e não numa lista de exames para todos de forma indiscriminada. Exceções são as doenças agudas, o acompanhamento de doenças crónicas ou rastreios baseados em prova científica.

ANÁLISES E EXAMES DE IMAGIOLOGIA FREQUENTES
No internamento, a prática de pedir exames diários, por rotina, não tem qualquer vantagem no auxílio da decisão clínica. Ao invés, a requisição diária pode facilitar eventos adversos, por exemplo anemia devido a hemogramas em série, ou investigações adicionais resultantes de achados incidentais e sem perigo ou relevância.

RADIOGRAFIA AO TÓRAX POR ROTINA
A realização de radiografias ao tórax deve basear-se na avaliação criteriosa dos doentes através da história clínica e do exame físico. Qualquer exame tem riscos associados e este em particular implica a exposição a raios-X.

DENSITOMETRIA ÓSSEA COM INTERVALO DE UM ANO
A avaliação da densidade mineral óssea deve seguir as recomendações portuguesas para a prevenção, diagnóstico e tratamento da osteoporose. O intervalo ótimo entre osteodensitometrias não está estabelecido mas em menos de dois anos pode levar à deteção de alterações dentro da margem de erro do próprio aparelho e não nos ossos do doente.

TAC EM CASOS DE DORES DE CABEÇA OU DE COSTAS
No caso de cefaleia, sem outras alterações na história clínica ou no exame neurológico, a possibilidade de encontrar uma lesão séria na tomografia computorizada ou na ressonância magnética é mínima. Ambos os exames só se justificam na presença de sinais de alarme, como agravamento progressivo, sinais neurológicos, febre inexplicada ou história de cancro, por exemplo. A lombalgia aguda mecânica pode ser muito incapacitante, mas na maioria dos casos não necessita de ser investigada por tomografia ou ressonância. Na ausência de outras suspeitas — por exemplo agravamento após quatro a seis semanas de tratamento, emagrecimento suspeito, dor torácica ou abdominal, trauma ou osteoporose —, os estudos de imagem não contribuem para a orientação dos doentes e sujeitam-nos a uma dose desnecessária de radiação.

PROVA DE ESFORÇO PARA JOVENS ATLETAS
A realização de eletrocardiograma com uma interpretação adequada à população atlética tem uma sensibilidade e especificidade superior a 90% para diagnosticar patologias cardiovasculares potencialmente letais. Exames como o ecocardiograma ou a prova de esforço, quando usados de forma rotineira, não aumentam a acuidade diagnóstica comparativamente à realização de história clínica, exame objetivo e eletrocardiograma, estando inclusivamente associados a um aumento do número de falsos positivos.

RASTREIO COLORRETAL EM IDADES AVANÇADAS
Face à história natural da evolução da doença, não é recomendado o rastreio a pessoas com expectativa de vida inferior a dez anos, assim como a vigilância após a remoção de pólipos quando o benefício é questionável. A idade a ter em conta para os exames é de 50 a 75 anos, podendo considerarem-se utentes com 75 a 80 anos com bom estado geral de saúde e sem comorbilidades relevantes.

DOSAGEM DE VITAMINA D
O défice de vitamina D é comum em populações em latitudes mais altas, durante o inverno e com exposição solar limitada. A suplementação com vitamina D e o aumento da exposição solar são suficientes para a maioria dos indivíduos saudáveis. O teste laboratorial só é apropriado em indivíduos de alto risco quando os resultados têm por objetivo a instituição de uma terapia mais interventiva, como por exemplo casos de osteoporose, doença renal crónica, má absorção ou obesidade. O rastreio de rotina em bebés saudáveis, crianças e adultos (incluindo mulheres grávidas) não é recomendado.

TAC PARA APENDICITE EM CRIANÇAS
O episódio agudo pode ser diagnosticado com o exame objetivo do doente. Quando é preciso recorrer à imagiologia, a ecografia é a “modalidade inicial de eleição”. Assegura uma sensibilidade e uma especificidade próxima de 94% e permite diminuir os potenciais riscos da radiação.

BIOMARCADORES TUMORAIS NO DIAGNÓSTICO INICIAL
Inúmeras revisões sistemáticas demonstram que não vale a pena testar biomarcadores em doentes com sintomas não específicos na esperança de encontrar um cancro. Os marcadores tumorais, no geral, não devem ser usados na abordagem inicial e raramente são diagnósticos devido às baixas sensibilidade e especificidade. O doseamento de certos biomarcadores é útil sobretudo para monitorizar o desenvolvimento de tumores específicos em resposta ao tratamento, na deteção de alterações ou no aparecimento de um cancro secundário ou recorrente.

A ecografia obstétrica para gravar vídeos ou tirar fotografias tridimensionais não é aconselhada

ECOGRAFIAS OBSTÉTRICAS ‘RECREATIVAS’
A ecografia obstétrica destina-se a avaliar o desenvolvimento fetal e a idade gestacional para realização está bem definida. A ecografia obstétrica com objetivos fora de uma indicação clínica — como gravar vídeos ou disponibilizar fotografias tridimensionais — é desaconselhada, por envolver gastos desnecessários de recursos e desvirtuar a sua utilização como método complementar de diagnóstico.

ECOGRAFIA À TIROIDE POR ROTINA OU RASTREIO
A utilização pouco criteriosa da ecografia leva frequentemente à identificação de nódulos, a grande maioria com um comportamento sem consequências graves. Os exames efetuados sem indicação correta podem levar a achados incidentais, que podem implicar mais procedimentos diagnósticos, tratamentos desnecessários ou vigilância prolongada. A realização de ecografia tiroideia deve ser ponderada caso a caso. O mesmo princípio aplica-se ao doseamento das hormonas da tiroide. Não existe evidência de benefício no rastreio ou tratamento do hipotiroidismo ou hipertiroidismo subclínico em pessoas assintomáticas nem está bem definido qual o limiar para iniciar tratamento. O doseamento das hormonas em pessoas sem sintomas poderá levar a falsos positivos, sobrediagnóstico e sobretratamento, não sendo bem conhecidos os efeitos secundários da medicação. A maioria dos casos reverterá espontaneamente.

ANTIBIÓTICO PARA TOSSE
Nos adultos, a maioria das infeções respiratórias acompanhadas de tosse de evolução aguda têm origem vírica e não bacteriana. A duração média habitual da tosse é de 18 dias, embora os doentes esperem que dure apenas cinco a sete e recorram aos cuidados de saúde para antibióticos. A antibioterapia não altera o normal curso clínico e nestes casos pode levar a toxicidade e possível indução de resistências bacterianas. A mesma regra é válida para a maioria das infeções respiratórias superiores simples (constipações) com corrimento nasal, rouquidão, dor de garganta e febre.

RETIRAR ‘CHUMBO’ ANTIGO
Ensaios clínicos aleatorizados demonstram que o mercúrio presente em amálgamas (conjunto de metais que apesar de não conterem chumbo após mistura aparentam a cor do chumbo) não produz doença, pelo que a remoção profilática é desnecessária e leva à absorção de maiores doses de mercúrio do que se a amálgama permanecesse. A colocação de restaurações de resina composta causa um aumento transitório nos níveis urinários de bisfenol-A (presente no plástico), para os quais são desconhecidos os efeitos na saúde. Além disso, elevados níveis de evidência sugerem maiores taxas de falha em resinas compostas do que em restaurações com ‘chumbo’.

REPOUSO PARA GRÁVIDAS DE GÉMEOS OU DE RISCO
A evidência científica não demonstrou melhoria dos resultados obstétricos com o repouso ou a restrição da atividade física em gravidezes gemelares, restrição do crescimento fetal, antecedentes de aborto, risco de parto pré-termo ou doença hipertensiva. Ao invés, estas recomendações têm um impacto desfavorável, aumentando o risco tromboembólico e favorecendo a atrofia muscular.

O check-up anual em adultos sem fatores de risco não reduz a morbilidade ou mortalidade

INDUÇÃO DE PARTO/CESARIANA ELETIVA PRÉ-39 SEMANAS
A indução do trabalho de parto ou a cesariana eletiva antes das 39 semanas devem ser evitadas, exceto em caso de doença materna ou fetal. O desconforto e a ansiedade relacionados com a gravidez normal não constituem indicações para a antecipação do término da gravidez. Além disso, podem existir consequências negativas: morbilidade neonatal, necessidade de recurso aos serviços de saúde durante o primeiro ano de vida e risco aumentado de dificuldades de aprendizagem.

CORREÇÕES PARA ‘PÉ CHATO’
O pes planus é comum em crianças. Embora raramente conduza a algum tipo de incapacidade, constitui uma grande preocupação para os pais, sendo um motivo frequente de ida ao médico. A maioria dos casos pediátricos caracteriza-se por um arco longitudinal interno normal em descarga, que se torna mais plano em carga (ou seja, dizem-se dinâmicos). Este tipo de pes planus é, na maioria das vezes, assintomático, não-patológico e desaparece espontaneamente até à adolescência.

SUPLEMENTOS DE ERVAS OU HOMEOPÁTICOS
As terapias alternativas são muitas vezes consideradas seguras e eficazes apenas porque são ‘naturais’ mas falta controlo rigoroso da qualidade das substâncias presentes em muitos suplementos de fitoterapia e dietéticos. Muitas vezes não há também evidências sustentáveis de que estes produtos são eficazes, mas existem evidências substanciais de que podem causar danos. Além disso, implicam riscos indiretos para a saúde quando atrasam ou substituem formas mais eficazes de tratamento ou quando comprometem a eficácia de medicamentos convencionais.

COVID: ENTUBAR DOENTE COM SOBREVIVÊNCIA REDUZIDA
Em contexto de pandemia, decisões como entubar um doente têm carácter urgente mas devem, tanto quanto possível, incluir uma discussão prévia. Doentes idosos com comorbilidades significativas, que necessitem de entubação por covid ou por outra razão, têm uma baixa probabilidade de sobrevivência ou podem sobreviver com má qualidade de vida — avaliações atempadas envolvendo os doentes e as famílias ajudam a prevenir decisões precipitadas ou que não são reflexo da vontade do próprio. No caso da medicação, a opção deve ser não prescrever terapêuticas sem evidência científica de eficácia.

Originalmente publicado no jornal Expresso de 20.06.2020 - (conteúdo exclusivo a assinantes)



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