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OPINIÃO - O meu 25 de Abril ou a origem do meu regresso

Foi mais um dia de escola algo penoso, mas há um clarão imenso de alegria que retenho na memória difusa e obscura com 40 anos de distância.
Eu era um menino de sorriso tímido cheio de saudades da aldeia natal. Aprendia a ler e a escrever numa língua estranha, num país erguido sobre um passado negro que eu ignorava por completo, num país generoso e disposto a oferecer a felicidade aos incansáveis emigrantes. Andava numa escola com o nome do poeta Matthias Claudius e tinha uma professora chamada Frau Mohn e colegas com nomes como Hansi, Martin, Jakob e Petra. Também não esqueço o senhor Xico, o senhor António, a dona Laurinda, por exemplo, ou o Alcides, a Genita, o Tózé, o Micha, a Beta e vários outros amigos conterrâneos.

Em Bona, apesar dos rigores do regime de poupança doméstica adoptado em nome de um futuro melhor, não nos faltava roupa nem calçado e não sabíamos o que era fome. Adorávamos encavalitar-nos nos carros das compras do Aldi, do Edeka ou do Kaufhof. Bebíamos Coca-Cola, Fanta, Sprite e sumos deliciosos, comíamos chocolates, gomas e caramelos gulosos com que as crianças da nossa terra não podiam sequer sonhar, tínhamos brinquedos maravilhosos que elas nem podiam imaginar.

Naquela altura já vivia com os meus pais, o meu irmão e a minha irmã na Endenicher Allee, 104, no primeiro andar de um pequeno prédio habitado por estudantes guedelhudos e barulhentos com calças boca-de-sino e suíças compridas, parecidos com os terroristas dos telejornais, mas muito mais simpáticos do que os vizinhos pacatos e sisudos da esquerda e da direita. Ficava a cem metros das cantinas universitárias com as paredes enfeitadas por grafitis e slogans políticos de significado ainda inalcançável. Só sei que o meu pai admirava Willy Brandt, um senhor afável num cartaz já meio descolado e rasgado pelo tempo. Foi por ali que aprendi a andar de bicicleta.

Descobri há pouco que era quinta-feira, mas não me lembro se passámos aquela tarde de primavera, bem mais luminosa do que a de hoje, a brincar no pequeno jardim das traseiras ou no parque infantil, enquanto a minha mãe estava a trabalhar e o meu pai recebia a visita do senhor Terenas, um agente do Banco de Fomento Nacional, com a notícia do golpe de estado. Andava no turno da noite e ia pegar às dez da noite, mas já não conseguiu dormir.

À hora de jantar, acorremos todos à sala. “Venham, venham! Olhem Portugal na televisão!”, exultava a minha mãe abraçada ao meu pai, ambos de olhos radiantes postos no pequeno ecrã, ainda a preto e branco, repleto de pessoas nas ruas e soldados com umas flores nos canos das espingardas. Queria compreender o que estava a acontecer e, entusiasmadíssimos, os meus pais lá nos explicaram o melhor que puderam o fim da ditadura que nos escorraçara para aquela Alemanha e o princípio da ansiada liberdade em Portugal. 

Foi então que eu, pela primeira vez, os importunei com a pergunta primordial que havia de repetir vezes sem conta ao longo de mais sete anos, a pergunta libertadora que, por sinuosos caminhos de incontável solidão e de alguns vantajosos sacrifícios, acabaria por me fazer regressar de vez a Coimbra e que, afinal, me trouxe até aqui, me levou a ser quem fui, a ser quem sou e também a escrever o que escrevi: “Então já podemos voltar para Portugal?”

Rogério Paulo Madeira ©
“Instantâneos e outras fotos da vida de um professor qualquer” – 25.4.2014/n.º1

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