CIÊNCIA VIVA - A razão pela qual as noites de insónia podem afectar a nossa saúde
Porque é que as pessoas que têm horários desregrados, tais
como os trabalhadores nocturnos, são mais propensas às inflamações intestinais
e à obesidade? Uma relação agora descoberta entre a função imunitária e o
relógio circadiano do cérebro poderá constituir a resposta a esta pergunta.
É bem sabido que as pessoas que fazem turnos de trabalho
nocturnos, ou que mudam com frequência de fuso horário, têm uma tendência
acrescida para o excesso de peso e sofrem mais a miúde de inflamações
intestinais. Muitos estudos têm procurado desvendar a causa deste fenómeno,
tentando relacionar os processos fisiológicos com a actividade do relógio
circadiano do cérebro, que é gerada em resposta ao ciclo noite-dia.
Agora, a equipa de Henrique Veiga-Fernandes, no Centro
Champalimaud em Lisboa, Portugal, descobriu que a função de um certo grupo de
células imunitárias, conhecidas por contribuírem de forma muito significativa
para a saúde intestinal, encontra-se sob o controlo directo do relógio
circadiano do cérebro. Os seus resultados foram publicados no dia 18 de
Setembro na revista Nature.
“A privação de sono,
ou os maus hábitos de sono, podem ter efeitos graves sobre a saúde, provocando
um leque de doenças que possuem frequentemente uma componente imunitária, tal
como as inflamações intestinais”, diz Veiga-Fernandes, o investigador
principal que liderou o estudo. “Para
perceber por que isso acontece, começámos por querer saber se as células
imunitárias intestinais eram influenciadas pelo relógio circadiano.”
Grande
relógio, pequenos relógios
Quase todas as células do corpo possuem uma maquinaria
genética interna que acompanha o ritmo circadiano através da expressão dos
chamados “genes relógio”. Estes genes funcionam como pequenos relógios que
indicam a hora do dia às células, ajudando assim os órgãos e os sistemas por
elas compostos a antecipar o que vai acontecer, por exemplo se são horas de
comer ou de dormir.
Como cada um destes pequenos relógios é autónomo, eles
precisam de ser sincronizados. “As
células no interior do corpo não recebem informação direta acerca da
luminosidade exterior, o que significa que alguns deles poderão não estar a
‘marcar’ a hora certa”, explica Veiga-Fernandes. “A tarefa do grande relógio do cérebro – que, esse sim, recebe
informação direta da luz do dia – consiste, portanto, em sincronizar todos os
pequenos relógios que existem dentro do corpo de forma a que todos os sistemas
fiquem por sua vez sincronizados, o que é absolutamente crucial para o nosso
bem-estar.”
Entre as diversas células imunitárias presentes no
intestino, a equipa descobriu que as chamadas “células linfóides inatas de tipo 3” (ILC3 na sigla em inglês) eram
particularmente sensíveis às perturbações dos seus genes relógio. “Estas células desempenham funções
importantes no intestino: lutam contra as infeções, controlam a integridade da
parede intestinal e regulam a absorção de lípidos”, explica Veiga-Fernandes.
"Ora, quando perturbámos os seus relógios, constatámos que o número de
ILC3 no intestino diminuía de forma significativa, o que conduzia a inflamações
severas, falhas da barreira intestinal e à acumulação acrescida de gordura."
Estes resultados levaram a equipa a perguntar-se por que o
relógio circadiano do cérebro tinha um efeito tão marcado sobre o número de
ILC3 no intestino. A resposta a esta pergunta acabou por ser o “elo perdido” que procuravam.
No
sítio certo à hora certa: eis a questão
Quando os cientistas analisaram a forma como a perturbação
do relógio circadiano cerebral influía sobre a expressão de diversos genes das
ILC3, descobriram que desencadeava um problema muito específico: o “código postal” molecular destas células
desaparecia! Acontece que, de forma a se localizarem no intestino, as ILC3
precisam de expressar uma proteína na sua membrana que funciona como um código
postal molecular. Este marcador diz às ILC3, que só residem no intestino de
forma transitória, para onde devem migrar. Na ausência dos sinais vindos do
relógio circadiano do cérebro, as ILC3 deixam de expressar este marcador, o que
significa que se tornam incapazes de chegar ao seu destino.
Segundo Veiga-Fernandes, estes resultados são muito
entusiasmantes, porque permitem esclarecer porque é que a saúde intestinal
sofre nas pessoas que permanecem regularmente ativas durante a noite. “Este mecanismo é um belíssimo exemplo de
adaptação evolutiva”, diz o investigador. “Durante o período ativo do dia, que corresponde aos momentos em que nos
alimentamos, o relógio circadiano do cérebro reduz a atividade das ILC3 de
forma a promover um metabolismo saudável dos lípidos. Mas ao mesmo tempo, o
intestino pode ficar danificado durante as refeições. Por isso, uma vez
terminado o período de alimentação, o relógio circadiano do cérebro diz às ILC3
para voltarem ao intestino, onde são agora necessárias para lutar contra
eventuais invasores e promover a regeneração do epitélio (parede) intestinal.”
“Não é, portanto,
surpreendente”, prossegue Veiga-Fernandes, “que as pessoas que trabalham à noite sejam suscetíveis de sofrer
perturbações inflamatórias do intestino. Tem tudo a ver com o facto de este
eixo neuro-imunitário específico estar tão bem regulado pelo relógio do cérebro
que qualquer mudança nos nossos hábitos surte efeitos imediatos nestas
importantes células primordiais.”
Este estudo vem juntar-se a uma série de descobertas
fundamentais, realizadas por Veiga-Fernandes e a sua equipa, que estabelecem
novas relações entre os sistemas imunitário e nervoso. “A noção de que o sistema nervoso é capaz de coordenar a função do sistema
imunitário é totalmente nova. Tem sido um percurso muito inspirador; quanto
mais aprendemos acerca desta relação, melhor percebemos o quão importante ela é
para o nosso bem-estar. Aguardamos agora pelo que iremos descobrir a seguir”,
conclui
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