SAÚDE - SNS vai continuar sem oferta dentária e oftalmológica
Cheques e assistência em centros de saúde são irrisórios. Peritos apelam a apoio privado
Vera Lúcia Arreigoso - Jornal Expresso
Partiu um dente ou suspeita que precisa de usar óculos e não tem
como pagar um médico privado, onde pode recorrer? Não pode. Terá de esperar por
uma consulta com o médico de família e depois pela referenciação para o
especialista hospitalar. Por outras palavras, na melhor das hipóteses vai ter
acesso à reparação dentária ou à correção visual meio ano depois. O Serviço
Nacional de Saúde (SNS) tem este ano mais dinheiro, mas vai continuar a não
garantir a assistência mínima necessária em cuidados dentários e
oftalmológicos.
O Governo garante que no Orçamento do
Estado para a Saúde em 2020 estão previstas verbas para reforçar a saúde oral e
visual, sucessivamente apregoadas como apostas pelo primeiro-ministro durante
as discussões no Parlamento, mas quem está no terreno afirma que não consta
nada de concreto. Aliás, a única referência explícita é o alargamento da oferta
de saúde oral nos cuidados primários, com uma verba de €1,8 milhões, que para
os peritos é uma opção errada.
O projeto para oferecer dentista em
centros de saúde e Unidades de Saúde Familiar (USF), mediante a referenciação
pelo médico família, teve início em 2016 e deveria estar já em 200 pontos do
país, mas ainda não vai além de uma centena. E os serviços têm ainda outro
défice: são sobretudo intervenções preventivas ou para tratamentos SOS, como
extrações. Ou seja, os tratamentos mais onerosos, de reabilitação, e com
próteses, ficam de fora. Resumindo: os 70% de portugueses com falta de dentes
naturais, os 8,2% sem qualquer dente natural e as bocas sem dentes vão
continuar sem motivos para sorrir.
Outras das promessas por garantir é o
alargamento do cheque-dentista. Os dentistas têm feito um apelo prioritário à
inclusão das crianças aos dois anos de idade mas, mais uma vez, não há qualquer
evidência de que o Governo vá mesmo avançar. O vale para ir a um consultório
privado é positivo mas resume-se a um penso rápido. “A cobertura é muito
restrita, há dois ou três cheques por criança, de €35, para intervenções
rudimentares. Devia prever acidentes e malformações. E as exceções obrigam à
via sacra da burocracia”, critica o bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas,
Orlando Monteiro da Silva.
O excesso de condicionantes leva ainda
a incongruências. “O cheque é emitido em junho/julho, antes das férias
escolares, e perde validade em outubro, pelo que muitos pais nem chegam a
conseguir fazer a respetiva utilização. Noutro caso, os idosos com complemento
solidário beneficiam de €200 a cada dois anos para próteses mas têm de adiantar
o dinheiro e esperar pelo reembolso da Segurança Social. Sendo pessoas que
ganham €300 e com alguma iliteracia, nunca pedem essa ajuda”, explica o
bastonário. Mas há mais: a discriminação entre portugueses. Nas crianças e
jovens é só para os que frequentam o ensino público e entre as grávidas apenas
para as que são seguidas no SNS.
Os hospitais poderiam ser uma
alternativa, mas também falham. “Não dão
praticamente resposta, à exceção dos hospitais com faculdades, e mesmo assim
tudo muito limitado.” Isto é, resta o privado. E como tal, “mais de metade da
população não acede à saúde oral e à medicina dentária por razões económicas —
são despesas ‘catastróficas’ entre as famílias mais pobres e até de classe
média — e por alguma iliteracia”, salienta Orlando Monteiro da Silva.
Na oftalmologia, o cenário é ainda
mais ‘mal visto’. Não há qualquer aposta clara na assistência aos portugueses e
os oftalmologistas preparam-se para apresentar um plano B ao Governo. A partir
deste mês, vão reunir consultórios privados que queiram prestar serviços ao
SNS, por convenção como nos exames ou por cheque-visão. “O problema no SNS é a
completa ausência da saúde oftalmológica nos cuidados primários, desde logo
porque não há oftalmologistas interessados em estar a tempo inteiro na consulta
de oftalmologia primária”, afirma Fernando Falcão Reis, presidente da Sociedade
Portuguesa de Oftalmologia.
Para já, o objetivo é reunir cem
especialistas privados para depois formalizar a proposta ao Ministério. “O Estado poupará o que paga aos hospitais
em produção adicional. Por um valor de cerca de €25 a €30 por consulta qualquer
médico adere”, garante. Segundo o responsável, não há alternativa se o
Estado quiser assegurar esta assistência aos portugueses. “A Urgência de oftalmologia só existe nos grandes hospitais e os centros
de saúde não têm alternativa a não ser encaminhar para o hospital, com as
consultas cheias de cuidados primários que aumentam a lista de espera, porque
não têm médicos nem equipamentos.”
Portugal tem dez mil médicos-dentistas, dos quais apenas 18 no SNS. Famílias têm de pagar os cuidados e 30% só vai ao dentista em SOS |
PRIVADOS ASSEGURAM POUPANÇA AO SNS
Perante as ineficiências, os peritos
são unânimes em defender o recurso a parcerias com o sector privado. “Uma política de Saúde Pública não pode ter
restrições por questões ideológicas. Devemos manter o SNS mas também ir ao
privado, de forma regulada, buscar os cuidados de que a população precisa”,
afirma o bastonário dos médicos-dentistas.
O economista de Saúde Pedro Pita
Barros dá-lhe razão. “O crescimento da
oferta pública via SNS ficou sucessivamente subalternizado por outras áreas,
sendo que a rede privada dava alguma resposta à população com capacidade para a
pagar (ou que beneficiava de subsistema ou de seguro). Em ambos os casos, é
mais rápido aproveitar as redes no sector privado do que duplicar a capacidade.”
Além disso, “se as relações contratuais
forem bem elaboradas, será também mais barato, por evitar a duplicação; isto
não impede que o sector público tenha de investir se houver zonas desprotegidas
pela rede privada”.
Do Governo a resposta é ‘nim’: “O
Ministério da Saúde estuda todas as propostas que visam a melhoria da saúde dos
portugueses.”
CUIDADOS
ORAIS A METADE DO PROMETIDO
Foi um
passo marcante para garantir cuidados dentários mas perdeu fôlego: a colocação
de médicos dentistas nos cuidados primários estava prometida em 200 unidades e
só está assegurada em 100. Concentram-se em áreas menos centrais ou mais
desfavorecidas, ainda assim sem contemplar os tratamentos mais onerosos.
Estremoz e Portel, no Alentejo e onde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem nos
quadros dois estomatologistas e nenhum dentista, e as unidades de Tavira,
Portimão e Faro, igualmente afetadas pela falta de profissionais — o Algarve
conta com quatro estomatologistas e um dentista —, são pontos do país onde o
projeto já avançou. Na Grande Lisboa, a Damaia, com uma população carenciada,
também está contemplada, assim como Algueirão ou Queluz. No resto do país, há
dentista em Vouzela, Lourinhã, Tabuaço, Vinhais, Moita, Santo António dos
Cavaleiros, entre outros. O projeto teve início em 2016 e, além de não estar
onde estava planeado, mantém serviços limitados a profilaxia e extrações e os
profissionais em roda livre, os 150 dentistas aderentes são prestadores de
serviços. A Ordem tem pedido a integração no SNS, mas há dois anos que o
documento está nas Finanças.
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