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REFLEXÕES - Pensar [n]a calamidade [e para lá dela…]




Porque quem sofre, a sério, grita e não tem disponibilidade interior para refletir, convirá pensar enquanto, entre nós, os gritos não se tornam insuportavelmente estridentes e indigeríveis.

De repente, a casa ficou estranha. Descobrimos, sem saber bem como aqui chegámos, que é ‘espaço’ de dormir e não ‘lugar’ de viver. Transportámos para a ‘rua’ a nossa existência social e amputámos dentro de portas essa dimensão basilar do ser pessoa, circunscrevendo-a a uma vivência quase somente virtual. No face a face concreto somos demasiado estranhos, estrangeiros, hóspedes, de quem reconhecemos as feições do rosto, mas com quem fazemos circular pouca vida. É no ‘mundo’ que acontecemos e nos esgotamos. O repouso, ansiado ardentemente em tempo de trabalho, parece diminuir a nossa propensão para a relação e faz emergir uma certa inabilidade para lidar com o descanso.

Não é sobre dicas relativas ao que fazer confinado a casa este texto. Além da escassez de talento pessoal, ‘excetuando o jeito especial para dormir’, abundam as sugestões, mesmo que falte a vontade de as colocar em prática. Sobre a pandemia e o estado de excecionalidade gerado, apenas quatro notas telegráficas. Confiança no sistema e nos especialistas, sem cedência à contra informação, às notícias falsas, aos alarmismos histéricos, aos populismos aproveitadores, desejando coragem, lucidez e critérios humanizadores nas decisões. Gratidão curvada à ‘linha da frente’, que não pode parar. Fazer a nossa parte, no imediato, no domínio da responsabilidade individual, sem que morramos da cura e reinventando modos de ser e fazer. Preparar o pior, esperando o melhor, antecipando cenários e dinamizando o melhor das relações solidárias de proximidade.

Este é um texto sobre a condição humana radicalmente interrogada neste tempo de especial fragilidade e opaca neblina. O medo chegou sem se fazer anunciar ou com avisos longínquos, relativizados pela sensação de segurança e domínio, pela cientificidade e pelo humor, pela ocidentalidade civilizada e pela maturidade dos regimes democráticos. De repente, eminência de escombros, onde pareciam existir apenas fortalezas. Dúvidas, onde pontificavam certezas e soluções. Opacidade, onde o sucesso era vendido com inquestionável clareza. Um medo sem rosto é muito difícil de combater! E, como gostamos de nomear culpados, de identificar clara e obsessivamente os inimigos, depois [ou a par] da dificuldade de lidar com o vírus, vamos defrontar-nos com a dificuldade em lidar connosco mesmos. Talvez a pandemia nos tolha o discernimento, a ponto de nos colocar uns contra os outros, fazendo confundir eventuais erros indesejáveis, com a bondade humana pessoal dos seus protagonistas. Este medo é maior que o medo do vírus, confesso, talvez inconscientemente.

No meio desta neblina, eclode a esperança na capacidade regeneradora e regenerativa da condição humana. Quando o isolamento é relação e a tecnologia destiladora de beleza, cultura e solidariedade. Quando a gratidão perpassa os muros e se sente para lá das distâncias, exatamente onde os corações precisam de calor, as gotas de suor de ser enxugadas e os corpos de um regaço de descanso. Quando o silêncio é comunicação e trauteia sons de sublimidade estética, articula palavras grávidas da melhor humanidade, dinamiza e estimula gestos de densidade divina. Quando não fazer o que é comum é fazer o que importa, numa reinvenção do ser pessoa e sociedade, que vence o medo sem rosto e faz brotar vida para lá e apesar dele. Quando os ouvidos se demoram na escuta sem tempo das narrativas que geraram a nossa identidade, dos textos que teceram a nossa civilização, das bandas sonoras dos momentos mais significativamente nossos. Quando os corpos, com as devidas seguranças higiénicas, se quedam num lugar a contemplar a beleza dos outros, expressa nos traços esbeltos da jovialidade de rostos, nas rugas que são socalcos de história, no desalinhado irreverente dos cabelos dos pequenos em efervescência… A neblina rasga-se num arco-íris plural, global, de possibilidades amplas no lugar de problemas que aparentavam impossibilidade.

Pior do que a calamidade da pandemia será circunscrever esta gigantesca dinâmica solidária ao período da sua duração, inibir depois o nosso potencial cívico de reconstrução social e nada aprender com esta fatalidade cósmica, no sentido de nos reconfigurarmos como pessoas e sociedades.

Urgência e exceção no urgente e excecional, sem deixar de aprender com a excecionalidade.

Luís Francisco Marques

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