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CRÓNICA - O Moleiro do Tempo



            Quase todas as aldeias tiveram e ainda têm alguns habitantes mais populares, mais conhecidos, que se fizeram referências locais, normalmente porque a sua idade os tornou “castiços” ou conhecedores e sabedores e por assim serem, foram ou são alvo de respeito, admiração e atenção.
            Na crónica deste mês recordarei uma das figuras mais típicas da aldeia onde cresci e que já não está entre os vivos, há três décadas.
            Era Moleiro, tinha um Burro que se tornou seu inseparável e objeto de várias lendas locais, todas elas resultantes do seu estilo de vida, do seu estatuto construído ao longo do tempo. Os Moleiros eram homens importantes e deles dependiam muitas coisas, absolutamente decisivas na vida local, porque tratavam, em bom rigor, do pão para a boca em tempos em que tudo era mais difícil, resultado de trabalho árduo, diferente do esticar de mão atual nas prateleiras do supermercado, onde tudo está, porque sim.
A velha azenha, erguida em pedra e coberta por um telhado de telhas de “meia cana”, ficava na margem direita da ribeira, já depois de se lhe juntar a que vinha do lado de Gavinhos, ambas evidentemente dadas aos humores da água, por sua vez dados ao temperamento da chuva que caía em maior ou menor quantidade, mas na altura com mais acerto do que no presente.
Tenho e retenho algumas memórias do “Ti Virgílio”.
Morava em frente ao portão da minha casa, numa antiga e atarracada habitação que, entretanto, deu lugar a uma outra, de construção de meados da década de oitenta.
            Tal como muitos “velhos” da sua geração que atravessaram a longa noite do homem de Santa Comba, era um simpático consumidor do seu copito de tinto e, em remate, da escaldante bagaceira artesanalmente produzida nos vários alambiques da terra e guardada com zelo em muitas adegas e nas “tascas/vendas” da terra, duas em particular, uma em especial, quase sempre distribuida em pequenos cálices de pé e em balcão de tampo de mármore, assente numa estrutura de madeira.
E era por vezes em mais complicados “estados de alma” que o “Ti Virgílio” cumpria, quase na linha do mistério, o caminho muitas vezes noturno para a sua azenha, que ficava um par de quilómetros abaixo da povoação e para onde o caminho não era isento de perigos e apenas iluminado por um tímido candeeiro a petróleo e orientado pela sabedoria do velho e inseparável Burro, pelo meio de caminhos de terra e estreitos carreiros, serpenteando entre mato, pinheiros e eucaliptos...
Consta que, apesar desses “estados de alma” que o velho Moleiro Virgílio por vezes apresentava, nunca se perdeu pelo caminho e as reclamações que recebia tinham apenas a ver com a maior ou menor finura ou macieza das farinhas que resultavam do esfregar das mós ou no ritmo da queda do grão para “dentro” delas.
Tive a sorte que ter estado algumas vezes na “Azenha do Ti Virgílio”. Era – ainda é – um ponto de referência no curso da ribeira de Telhado, hoje praticamente em ruínas. E ainda mais sorte por ter ouvido os mumrmúruios do vento nas árvores no fundo do vale onde, fora isso, tudo era absoluto silêncio; o ruído da água na roda da azenha; o barulho irrepetível das mós a esfregarem-se uma na outra, e o cheiro... cheiro não, perfume da farinha suspenso no diáfano ar da Azenha. É quase impossível aguentar uma lágrima ao recordar algo que nunca mais acontecerá e que apenas esta crónica e outras memórias que ela suscite e que povoam outras pessoas, farão perdurar pelo tempo.
            Quando a água faltava nos humores da ribeira, rumavam – ele e o seu Jerico – para um dos moinhos de vento prostrados na Serra de Gavinhos, uns três quilómetros para Leste da povoação, no topo da serra e sempre que o vento fosse o adequado, porque, tal como a água, não podia ser muito, nem pouco. Era um saber de séculos, passado através de gerações, provavelmente e que se foi fazendo “lei” e caminho para as coisas acontecerem como aconteciam.
            Recordo-o ao lado do Burro – este com os taleigos colocados e pendurados no seu lombo – não raras vezes ambos cobertos da branca farinha, subindo a rua “do fundo do lugar” ou “o fundo da rua” como sempre foi conhecida, um verdadeiro postal que se colou, perene, na minha memória e na de muitos habitantes da aldeia..
A vida de Moleiro apurou nele enorme perspicácia na adivinhação do tempo que iria fazer nos dias seguintes. As pessoas da terra, entre cumprimentos – quando ele tinha boné ou chapéu, levantava-os com solenidade... - e uma ou outra provocação, quase sempre lhe perguntavam como ia estar o tempo para depois gerirem a sua vida, as suas hortas e sementeiras ou colheitas, que dependiam muito da chuva ou do sol, do frio ou do calor.
            Lembro-me de ter alguns diálogos com ele, ele sentado na soleira da sua porta, eu em pé, petiz, a escutá-lo com toda atenção. Questionava-o, sobretudo, acerca do tempo que ia fazer nos próximos dias, uma vez que o “seu” domínio das previsões meteorológicas era fundamental para a sua atividade de Moleiro e eram motivo da minha curiosidade infantil. E o meu interesse pela meteorologia, aguçado desde petiz, começou com ele. Ensinou-me, com a sua voz grave e rouca, que de onde corriam as nuvens já se sabia o que estava para vir em termos de tempo. E também o tipo de nuvens, a sua forma e a sua base, sobretudo. E ensinou-me, igualmente, que através da audição dos sinos das aldeias em redor da nossa, também era possível reunir informação adicional para adivinhar o tempo...
Por exemplo, o ouvir do sino da capela de Monte Redondo era sinal de tempo fresco (vento do lado do mar); ouvir o sino de Sazes era sinal de frio (vento de Norte); ouvir o sino da igreja matriz de Figueira de Lorvão/Gavinhos era sinal de chuva certa, como era ouvir a sirene da “Cinorte” (hoje Cimpor) ou os combóios em Souselas, porque o som vinha do Sul e Oeste, respetivamente, tocado pelos ventos que, com as nuvens, determinavam o tempo e o céu que nos cobria... E lembro-me de o ver a apontar as “névoas”, com o seu cigarro “Kentuky” ou “Provisórios”, não sei precisar... ao canto da boca, entre alguma tosse, anunciando, então, o tempo que iria fazer, numa certeza de lei.
E tinha frases que se tornaram verdadeiros “dizeres” locais e que irão desaparecer vergadas à passagem do tempo e das cada vez menos pessoas que as carregam e com as quais se brincava e, simultaneamente, se respeitava uma figura irrepetível que marcou a história da aldeia e que é exemplo de um estilo de vida que não mais voltará. Mais simples, difícil, sim, mais desprendido, mais genuíno. Diferente, tão diferente do tempo presente, demasiado igual, demasiado globalizado, julgo que mais pobre, socialmente falando.
Termino esta crónica com uma das suas mais “graves” sentenças...
“Um dia tudo isto – apontava com ar sério para o céu, semicerrando os olhos... – vai ficar escuro! Apaga-se tudo!”


© António Luís - 2020


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