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OPINIÃO - Perguntar desde a morte e da velhice




`Normalizar’ a morte é distinto de conviver saudavelmente com ela. Este é um desejo de uma humanidade amadurecida, inalcançável em absoluto, dado que marcado sempre pela companhia da interrogação, da incompreensão, do mistério como apelo sedutor e esmagamento silenciador, em simultâneo. Somos capazes de nos imaginar lindos e astronautas, desportistas e artistas, cientistas e famosos… Nunca mortos! Esta ‘incapacidade’ das nossas faculdades intelectuais diz muito sobre o desconhecido, a morte, que transportamos como guilhotina permanente, que se abate como lancinante inesperado que fere, que ‘experimentamos’ sempre noutros, sem saber desses o que seja ‘isso’ que agora ‘vivem’. Nada simplifica, explica ou resolve a morte. Algo [e alguém] podem dar-lhe [algum] sentido e ajudar ao convívio saudável com ela, na nossa qualidade de viventes mortais.

A ‘normalização’ da morte será um perigo que poderá resultar de um certo profissionalismo analítico, que encerra as vidas no quadriculado de um gráfico e almeja uma explicação anónima do fenómeno do morrer. Resulta, eventualmente, enquanto as mortes são longínquas e anónimas. Falece quando tocam os nossos e, consequentemente, nos tocam.

Mas, que poderá caber debaixo deste chapéu diagnóstico de ‘normalização da morte’?
Evoquemos as previsões matemáticas, os cálculos de índices, as estimativas e rácios. Sem negar a necessidade de indicadores objetivos para a tomada de decisão, é preciso cuidar do risco de transformar em números pessoas concretas. Acrescentando que cada um é sempre uma circunstância. Anotando que uma vida perdida não é um anonimato desencarnado ou um lugar teórico para sustentar a dissecação analítica. Para lá e em cima das informações oficiais, assistimos a desfiles semelhantes a boletins meteorológicos da fatalidade ou à irracional discussão sobre grandes penalidades duvidosas. Há sempre os que anunciam diabos piores, porque sim, baseados na intuitiva ciência da ‘achologia’. Colocam a cabeça de fora os que consideram sempre que algo foi premeditadamente roubado e que detrás de todas as esquinas espreita um sistema que impede de alcançar resultados. Será prudente, nem a ingenuidade infantil, nem a desconfiança absoluta da própria sombra, sob pena de mirrar a inteligência, o discernimento e a ação. É dos nossos que estamos a falar. De ‘Marias’ e ‘Manéis’ que morrem indignamente sem ninguém a segurar-lhes a mão, nem sequer para uma fotografia da praxe. A simplificação analítica estreita a amplitude das decisões. ‘Normalizar a morte’ acontece quando, por comodidade estatística e comunicacional, nos limitamos a quantifica-la, sem nos darmos ao trabalho de mais.

Anotemos as expressões recorrentes, no anúncio das mortes: ‘já era idoso/a’ e/ou ‘padecia de comorbilidades’. Que dirá isto do nosso edifício ético civilizacional? Os velhos permanecem sujeitos de dignidade, a sua ‘eficácia’ não é um critério mensurável e se há algum esforço acrescido que pode criar défice financeiro, é de justiça que seja a cuidar de quem nos trouxe até aqui. O contrário soa a descarte, a tentativa de libertação de um ‘peso’ eventualmente caro, a inferiorização de uma condição, ser velho, marcada pelo eufemismo de idoso e de sénior ou assistencialisticamente enunciado com o diminutivo invertebrado de velhinho.

O óscar das ‘tiradas de opinador sem a escolaridade mínima obrigatória’ talvez tenha de se atribuir ao pronunciamento ‘E daí?’! Lida com a morte, fazendo dela uma inevitabilidade somente antecipada por uma contingência circunstancial com tonalidades incontroláveis. E con-vive com isso aparentemente bem. Apenas aconteceu mais cedo o que iria acontecer algum dia! E as desorientações prosseguem… Sub-cultura à parte, descontada a estupidez da argumentação, a coisa parece ser de uma desumanidade primária, inconciliável com qualquer cargo de decisor. E, mais grave ainda, este fermento está espalhado. Sem ideias, sem promoção de debate, arregimenta louvores pela acefalia e eclode quando nos distraímos, com uma força que parecia não existir na nossa generalizada brandura.

Tem de haver algo a fazer, além de assistir em primeira fila ao esmiuçar de números para os quais estamos generalizadamente tecnicamente impreparados.

Apostar a sério na vida! Encher de vida é muito mais que simplesmente ajudar a morrer. Não se trata de canseira aparentemente inútil, mas de nutrir a existência com o alimento adequado à idade. Se a morte é uma inevitabilidade, é uma conquista civilizacional o adiamento desse fim inevitável, não por simples aritmética mensurável em ‘rankings’, mas pelo que isso representa de riqueza para o todo da comunidade. Cuidar dos velhos é deixá-los viver o que podem viver. Pobres destes, quando estão permanentemente entregues a diagnósticos e a técnicas e fazem apenas o que estes pareceres avalizados determinam, sem nunca terem opinião.

Humanizar a vida é [também] na esconder que alguém morre! A morte simplesmente escondida, além de desumanizar, pode deixar de fazer perguntas. E isso é uma tragédia acrescentada na escala. Este é um risco com sérias probabilidades de acontecer quando a morte é um número e deixa de ser uma pessoa.

Acompanhar quem vive a morte de outro! A morte de alguém é representa sempre um clamor, além de uma obrigação ética das estruturas de cuidado social, de acompanhamento de quem experimenta vivo a quebra de relação com quem morre. Tudo o que for transformar estes momentos em folhetins novelísticos ocasionais, facilmente esquecidos nas espuma dos dias e substituídos por episódios de tragédias seguintes é baixar as fasquias da ética mínima ao limiar da indignidade.

Com a morte de alguém parte uma narrativa e um tecido de cultura. Desmoronam-se os nossos museus vivos, as nossas bibliotecas existenciais. Secam os nossos jardins de histórias e infertiliza-se o nosso chão. E isto não é número, mas vida. Este tem de ser o tempo do laboratório da igualdade. Depois do diagnóstico e de algum cuidado [sempre inacabado…], temos a oportunidade única de pensar profeticamente e de ensaiar gestos verdadeiramente diferenciadores. Uma boa possibilidade, num território envelhecido, pode ser deixar de pensar os velhos como fonte de problemas, como objeto de cuidado, mas passar a contar com eles como protagonistas da construção social. Afinal, velhos, bem velhos [eu, pelo menos], é o que todos desejamos ser. De contrário, seremos velhos antes do tempo e mortos prematuramente…        

Luís Francisco Cordeiro

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