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REFLEXÕES - Especialistas em olhos




Num ápice, somos todos desafiados a ser especialistas em olhos. A descortinar quem se protege [e nos protege] detrás da máscara. Quem se anuncia no olhar. Quem se diz nas palavras entrecortadas por esse temporariamente necessário obstáculo à comunicação.

É do filósofo franco-argelino Jacques Derrida [1930-2004], ‘autor’ do movimento de reflexão denominado ‘Desconstrução’, um dos mais singulares pensamentos contemporâneos sobre os olhos, que tanta centralidade alcançam agora, no dinamismo comunicacional que somos forçados a [aprender a] viver. Diz Derrida, e são boas notícias para a obsessão do elixir da juventude, que se trata da “parte do corpo que não envelhece”, no que toca ao invólucro e não às faculdades, claro está. É especialmente bonito que o filósofo pense os olhos como o lugar para “procurarmos a infância de alguém”. Resultaria daqui que uma relação ancorada no olhar representaria um retorno comunitário à infância, com o que esse passo pode ter de regresso a uma positiva inter dependência, a uma esperança irreverente, a um sonho permanente, a um espanto persistente, a uma energia consistente…
É em Memórias de Cego[1], o livro editado em 1991 como catálogo de uma exposição do Museu do Louvre, em Paris, que Derrida pensa os olhos de uma forma mais sistemática. É deste texto que retiro as intuições que se seguem, procurando uma extrapolação para o ambiente que somos nestes tempos chamados a protagonizar.

Ver é sempre um entrever, diz-nos o filósofo. Entrevemos entre piscadelas de olho quase impercetíveis, ainda que sem elas o ato de ver se tornasse fisiologicamente impossível. Desta forma, o autor desconstrói os olhares pretensamente neutros ou absolutos. Ver é sempre espreitar parcialmente a ‘realidade’ possível, sem a esgotar ou a apropriar arrogantemente. Vemos entre a visibilidade e a cegueira, sendo que a ‘coisa em si’ nos escapa sempre. No fundo, somos todos ontologicamente cegos. A cegueira é parte da visão. Cegueiras nos intervalos da visão ou visão em intervalos de cegueiras podia ser a síntese do dinamismo do ver. Se é verdade que uns possam ver mais que outros, eventualmente não é menos verdade que todos veremos sempre pouco e que a visão da realidade se enriquecerá sempre com uma multiplicidade vasta de olhares, ainda que, mesmo essa ‘soma’, sempre insuficiente. Sem perder a noção de projeto e profecia, trata-se do apelo do instante, do ‘algo’, do possível, mesmo que o Todo e o Tudo permaneçam como apelo.

Derrida analisa a arte do desenho como ambiente propício para pensar os olhos. Explica que a ‘visão’ da obra é originariamente uma ruína, porque implica, em algum momento, a memória do olhado. O artista precisa de tirar os olhos do referente, para desenhar e tornar presente aquilo que memorizou. Em síntese, pensa através dos olhos e tateia a escuridão que tem diante, para procurar alguma luminosidade. Leio aqui um apelo à verdura da decisão e uma resistência a apenas avançar ‘pela certa’, sobre o alicerce apenas imaginário de um pretenso amadurecimento total. Somos no provisório, sempre. O futuro virá sem nós, se o medo e o calculismo nos fizerem reféns, a ponto de nos demitirmos de o fazer.

O filósofo da Desconstrução vai concluir que o próprio dos olhos não é ver, mas chorar. Todo o ponto de vista é, assim, não apenas um ponto de fuga [daquilo que olhamos], como também um ponto de fonte. Dele brota água que rega e gera outra coisa, não apenas a reprodução do visto. Também diante de nós se ergue agora a inevitabilidade de outra coisa, um ‘novo normal’ que não é regresso a um ‘antes’ que já não existe. Muitas forças desejam sempre que o futuro seja um regresso. 

Cabe-nos a luta pela improvisação refletida e preparada, pela criatividade [ainda] inominável e inimaginada, pela poesia [agora] pouco decifrável, mas arte de exprimir os silêncios das palavras. É trabalho de artesãos pacientes, contra os mágicos do instantâneo, os vendedores de ‘contrafação’, os desdenhadores das alternativas que sempre existem, simplesmente porque o que pensam e querem é um outro igual ao mesmo. É pensamento e decisão o que se espera. Menos será estar do lado errado da história.

Luís Francisco Cordeiro Marques


[1] Tradução portuguesa: Jacques Derrida, Memórias de Cego, o auto-retrato e outras ruínas, trad. de Fernanda Bernardo, Fundação C. Gulbenkian, Lisboa, 2010.

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