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GUERRA COLONIAL – Relatos de um ex-combatente em Angola

Nota introdutória: Os factos aqui relatados são verídicos e provenientes do testemunho real de um ex-combatente da Guerra do Ultramar: o meu avô, Fernando da Conceição, que gentilmente se disponibilizou para os relatar, assim como para partilhar algumas das suas recordações desse período em que esteve na Guerra.

Com esta partilha dá-se a conhecer algumas das experiências que, assim como o meu avô, tantos outros homens viveram e que os marcaram para o resto das suas vidas.

Pretendo, deste modo, prestar uma sentida homenagem a todos estes grandes heróis, que são muitas vezes esquecidos, sobretudo pelo passar do tempo que vai deixando essa época cada vez mais longíqua.

Contudo, todos estes homens não deixaram de ser grandes lutadores. Não foi por regressarem do combate que deixaram de lutar, porque ainda hoje todos lutam contra as memórias sangrentas dessa altura! Todos eles são, ainda hoje, os mesmos heróis de antigamente!

Capítulo I – O embarque


Foi no dia 11 de janeiro de 1969. Partiu o meu batalhão juntamente com mais três, com destino a Luanda (Angola). Tudo juventude, cerca de 21 anos. Todos forçados a ir e, quem sabia, não mais voltar. Mas tínhamos de ir e não havia volta a dar. Restava-nos a ínfima esperança de voltar a ver aqueles que ali à nossa frente se encontravam.

Muitos familiares de todos os que partiam, menos os meus... Senti-me sozinho e um pouco desamparado. Aconchegavam-se em abraços apertados, beijos desesperados, choros angustiantes, uma amargura cortante que se impunha em todos os corações. Talvez até fosse melhor estar sozinho... Sim, talvez fosse melhor. Não teria de me despedir novamente de familiares e amigos, porque como diz o velho ditado “longe da vista, longe do coração”. Estivera com eles quinze dias antes, conforme a autorização que tivera para tal. E esses dias tiveram de servir para aproveitar o máximo que pude junto desses meus mais queridos. Confesso que me soube a pouco, mas foi bom. Deu-me algumas forças para regressar à Amadora, para depois seguir viagem. A viagem!... Essa tal que me viria marcar muito mais do que eu esperava, deixando cicatrizes profundas não só no corpo, como também no coração. Ai esse!... Tão mutilado que ele ficou. Nunca mais fui o mesmo e, às vezes, ainda me pergunto quem seria eu sem A viagem!...

Uma vez passados esses quinze dias junto da família e amigos, regressei, então, ao Quartel da Amadora. Todos nós que partiríamos para a guerra estávamos mentalizados do que iria acontecer... Não o suficiente, é certo. Contudo, sabíamos do que poderia suceder e só isso bastava para cortar a nossa respiração. O clima era de tensão e desespero. Só que não adiantava... Iríamos para o combate, independentemente de tudo.

Saí do Quartel para o cais da Rocha, onde já estava o Vera Cruz à nossa espera. Quando lá cheguei, olhei-o e admirei-me com a sua enormidade. Tive medo. Era aquilo que me iria arrancar do meu país, dos meus mais queridos, da minha vida... Para me levar ao meu maior pesadelo! Para me roubar de quem eu era!... Nunca mais fui o mesmo.

Antes de embarcarmos, mandaram-nos formar para ouvirmos um general a falar. Assim o fizemos. Nesse momento, fez-se silêncio. Comoveu-se-me o coração, mas exteriormente não perdi a postura. Olhei pelo canto do olho e vi o comandante do meu batalhão a dirigir-se a nós e a posicionar-se à nossa frente. Foi então que ele começou a falar e proferiu uma frase que me marcou e nunca mais me saiu da cabeça: “Vamos para a guerra.”; eu ouvia-o com atenção. “Nós vamos todos. Mas não voltamos todos.”; arrepiei-me. Todos sabiam bem isso... Mas não esperávamos ouvi-lo em voz alta. Senti um nó a formar-se na garganta e engoli em seco. Seria eu que não voltaria? Seria o meu colega do lado? Seria o meu amigo mesmo à minha frente?... Poderia ser qualquer um de nós.

Desesperei. Mas não havia volta a dar... Íamos mesmo todos. E nem todos regressariam.

No fim desse discurso, fomos entrando no Vera Cruz. Muitos apressavam-se para ir acenar às suas famílias e amigos, num último adeus, lá do cimo do barco. Eu, antes de entrar, hesitei. Benzi-me e, fechando os olhos, ali fiz a minha promessa com todas as minhas forças. Promessa essa que cumpriria assim regressasse. Sim, eu teria de regressar. Tinha deixado muito para trás... Tinha o meu grande amor à minha espera e eu voltaria para ela. Não podia desiludir aquela mulher, porque ela já tinha um pedaço de mim e eu já tinha um pedaço dela. Pensaria no aconchego dos seus abraços, no calor dos seus beijos e na doçura do seu olhar, porque isso me dava alguma esperança. E eu precisava disso, para além de muita fé e coragem!

Entrei e estava pronto a ir (que remédio!). Todos estavam empoleirados na lateral do barco virada para a multidão que estava em terra, de tal modo que o peso daqueles tantos homens fez com que o barco se inclinasse um bocado. Tal era o barulho que se ouvia no exterior, como era o barulho que ecoava por mim adentro, como gritos que ficavam presos no meu corpo, reprimidos por mim.

O Vera Cruz ecoou três apitos ensurdecedores e começou a mover-se. A viagem estava prestes a começar. Os lenços brancos agitavam-se, acenando, nas mãos dos militares e nas mãos das pessoas em terra. Lágrimas. Gritos. Dor. E um vazio gélido e agoniado. Pouco a pouco, afastávamo-nos. Dali a momentos, deixaríamos de ver terra e estaríamos sós, entre céu e mar, rumo a um futuro aterrorizante e desolador. Havia nos nossos corações um frágil fio de esperança, alicerçado na fé de que, talvez dali a dois anos, pudessemos estar de volta à nossa Pátria. Mas também havia muito medo do que ainda teríamos de enfrentar...




Mariana Assunção
Através do testemunho de Fernando da Conceição




9 comentários:

  1. Mariana, Os comentarios do seu avô expressam o sentimento de milhares de jovens que partiram para uma guerra que desconheciam e nāo sabiam se jamais voltariam. Foram para a guerra, cumpriram a sua missāo como lhes foi pedido. Cederam anos de sua juventude ou a vida por uma causa que desconheciam.
    Eu, tal como o seu avô, tambem com 21 anos tambem fui para Angola. Embarquei no Niassa em Abril de 1961 regressando em 1963.
    Nestes seus comentarios, refere-se apenas à partida. Deixar a familia, os amigos a segurança da paz em Portugal e ir para a guerra.
    Devo dizer-he que na minha experiência, partir para a guerra, deixar os amigos e a familia. Andar na guerra dois anos e pouco, deixar camaradas enterrados em solo Africano e passar o que passamos por lá, nada foi tāo traumatizante como o regressar a Portugal. A experiencia do regresso foi sem duvida uma das piores experiencias da minha vida. Apatia, desconhecimento, ignorância e recentimento provocou o sentimento de nāo pertencer, o sentimento de nāo ser parte da sociedade de entāo. Sentimo-nos sós e abandonados. Essa foi a minha verdadeira guerra.
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    1. Agradeço imenso a sua partilha e por me revelar também um pouco daquilo que passou! Vocês foram, sem dúvida, uns grandes heróis, sobretudo no momento de regresso, depois de tudo o que passaram e que vieram a passar... Um bem-haja! E, mais uma vez, muito obrigada pelo seu comentário!

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  2. Li com muita atenção e, só posso dizer que embarquei no mesmo dia com destino a Angola juntamente com o seu avô no Paquete Vera Cruz integrado no Batalhão de Caçadores 2860,subscrevo totalmente o que acabei de ler, esta história verídica é exatamente a minha, os meus parabéns, bem haja.

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    1. Muito obrigada, Sr. Manuel, pela sua partilha! Que coincidência ter ido no mesmo dia do meu avô. Bem-haja!

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    2. Caro Manuel Rocha, também pertenci ao Bat. Caç. 2860, fomos para o leste, Cazombo, pertenci à 2462, que ficou no Cavungo, com destacamentos no Massibi e no jimbe. A narração da Dona Mariana Assunção sobre o seu Avô, foi a pura realidade.

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    3. Obrigada pela sua partilha e comentário, Sr. Edmundo!

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  3. Maria Asssunção.
    Parabéns não só pelo seu escrito mas também para o seu avô que, reteve em sua memória o que era o embarque dos contingentes de militares que partiam para a África em defesa "dizia-se" em nome de Portugal. Assisti a dezenas de embarques no paquete Vera Cruz, vi mães, esposas e mais familiares a chorar, a acenar lenços brancos (como diz e bem o seu avô) na varanda da Rocha Conde de Óbidos, imaginava a dor de quem ficava e partia, contudo, para mim já não era estranho. falei com milhares (não exagero)de militares que partiam e regressavam, assisti muitos a bordo que enjoavam, dei muita comida de 1ª a alguns chegando mesmo a levar alimentação aos camarotes a muitos não só porque estavam enjoados mas que lhes era difícil para eles os primeiros dias de viagem. Eu era tripulante de esse navio e dois anos depois do seu avô viajar, coube-me a vez a mim também ir neste navio para Angola, porém, foi uma viagem diferente: não foi ir a Angola e voltar a Lisboa, mas sim ficar 27 meses também algures no Norte de Angola. Viajei no navio que também conhecia, logo, fui um sortudo com tratamento VIP onde nada me faltou. Não precisei de senhas para as refeições, (o seu avô de certeza que recebeu para saber as horas das refeições) fiquei em camarote em vez do porão e outras mordomias que também beneficiaram os meus camaradas. Era filho da casa como disse um ex-colega ao meu 2º Comandante de Batalhão. Só desejo e espero que o seu avô ainda seja vivo e que continue a contar-lhe o que foi a guerra colonial. Boa sorte a todos os ex-combatentes portugueses das 3 frentes de batalha.
    Joaquim Cortes

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  4. Parabéns bela homenagem eu conheço o seu avô era amigo do meu pai andou na mesma companhia o meu pai era conhecido pelo Penacova

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  5. Tal como o descrito, também eu embarquei no Vera Cruz, a caminho do desconhecido. Estive no norte de Angola, 29 meses, após 24 meses em Portugal, tinha 23 na partida e 25 quando regressei.
    Ficarei contente com a aprovação do Estatuto do ex-Combatente, só pelo cartão que expresse que lutei e sofri pela pátria, não por vontade própria mas, porque fui obrigado !
    Pertenci a Cart3451 do Bart3860.

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