OPINIÃO - Intuições interrogativas - A propósito do futuro CLDS de Penacova
No horizonte do programa Contrato Local de Desenvolvimento
Social, o texto que apresentamos procura uma fundamentação alavancadora de uma
reflexão teórica mais ampla sobre a plural ‘questão social’. Tomaremos os
quatro conceitos – contrato, local, desenvolvimento e social – como motivação,
na esperança de suscitar perguntas e intuições que convoquem o nosso entusiasmo
para uma ação de cuidado social [mais] estruturada e com [mais alargado]
horizonte. O ativismo social, motivado pela urgência, pela resignação aos
mínimos ou pela necessidade de apresentar ‘obra’, deixa insuficiente espaço
para dialogar sobre os princípios e gera diminutos hábitos de estudo e fundamentação
das atividades. No caso do concelho de Penacova, estas são múltiplas e bem
feitas, resultantes do trabalho incomensurável das IPSS’s e do empenho da ação
social autárquica. Partimos para esta reflexão alicerçados numa convicção
pessoal: a formação e a capacitação pessoais, objetivo nuclear do CLDS, são o
alicerce de um futuro onde a dignidade humana se ergue a partir da autonomia de
cada sujeito, em relação com os demais O resto é cosmética ocasional e
passageira.
O conceito de contrato remete para partes, iguais na
identidade e na dignidade, mesmo se com responsabilidades diferentes. Uma terá
a iniciativa, assumirá funções de coordenação, mas é ‘primeira entre iguais’,
não existindo subalternidade, dado que o fim almejado pelo contrato não se
alcançará, ao menos plenamente, sem os contributos dos diversos contraentes.
Correremos o perigo de estabelecer contratos locais
baseados na preponderância e na subalternidade, enredados em discussões
‘caserneiras’ sobre a paternidade/maternidade das ideias? Estaremos disponíveis
para abdicar de direitos individuais em função do bem comum? Procuramos, pelo
esforço do diálogo e, ao menos como tentativa, perceber uma vontade geral comum,
ou satisfazemo-nos com a mera soma aritmética da vontade de todos [de alguns,
quase sempre os mesmos], nomeadamente em função de interesses ocasionais e
índices de popularidade e reputação?
O desenho do território local é fundante neste e noutros
programas, em que órgãos de tutela decidem alavancar dinamismos de proximidade,
protagonizados por agentes conhecedores da morfologia social. A velha pedagogia
de Chesterton [1974-1936], no texto da Ortodoxia aponta ‘conhecer o Jonh’ como
o primeiro passo para lhe ensinar latim. Sugere estabelecer com ele uma relação
de confiança, suscitar-lhe um mínimo de desejo por saber algo de latim, vindo
só depois a necessária competência científica para ensinar latim. Para pensar e
desafiar os paradigmas da ação social.
Sempre o local. Mas o que dizemos quando dizemos ‘local’
hoje, aqui e agora, nomeadamente num país assimétrico, mas num tempo digital de
massificação de comunicação? Boaventura Sousa Santos, quando dá a pensar o tema
da globalização, formula o conceito de globalização hegemónica, ou ‘de cima
para baixo’, potenciadora das ambivalências socio-políticas, que acentuam as
distâncias entre centros e periferias. Divide-a em ‘localismos globalizados’,
quando uma parte se pretende impor ao todo, e ‘globalismos localizados’, para
traduzir o efeito concreto desse todo na parte.
O sociólogo contrapõe com o conceito de ‘globalização contra-hegemónica’,
ou ‘de baixo para cima’, que se carateriza por um ‘cosmopolitismo subalterno
insurgente’, concretizado em ações organizadas de resistência e emancipação às
hegemonias externas e que jamais implica uniformização homogénea e
neutralizadora das diferenças de identidade local. Esta globalização
alternativa compreende ainda a noção de ‘património comum da humanidade’,
ancorado na ideia segundo a qual existem valores e recursos que somente fazem
sentido quando e se reportados ao comum.
Nesta lógica, como podemos pensar o local? Uma realidade
lida à luz de uma neutralidade mítica, orgulhosamente só, que prescinde do
ponto de vista e das convicções do observador? Uma importação acrítica do
exterior para aplicar como receita milagrosa ao nosso espaço concreto? Veja-se,
a este propósito, o Manifesto do Festival Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos,
Tomar, nomeadamente no que respeita à noção de contemporaneidade do campo. Como
resistimos, organizadamente e com opções, à descaraterização cultural,
arquitetónica, social?
O que somos capazes de valorizar como realmente nosso
património comum, capitalizando isso como uma sinergia efetivamente
congregadora dos dinamismos pessoais e comunitários do todo mais amplo possível
da sociedade?
Por coerência de identidade, o ser humano [e a sociedade,
por extensão] pretende ser ele mesmo, mas nunca é o mesmo. Recorramos à psicologia,
para iluminar o conceito de desenvolvimento. De modo simplista, podemos afirmar
que a psicologia do desenvolvimento tem como objeto de estudo os processos
intra-individuais e ambientais que levam a mudanças de comportamento. Desta
aceção simplista, podemos reter duas ideias. Algo se passa dentro do sujeito.
Algo acontece no ambiente que envolve a pessoa. Pode levantar-se, ainda, uma
primeira questão: estes dois ‘acontecimentos’ terão alguma relação recíproca?
Como se concretiza o desenvolvimento? Algumas interrogações
se podem isolar e intuir. Esperamos o contexto perfeito para fazer acontecer,
valorizando absolutamente as condicionantes externas? Não fazemos o que tem de
ser feito em razão da necessária e prudente ‘ponderação’? Procuramos descortinar
a ‘forma’ global da realidade que estamos a ler ou enredamo-nos em minudências
casuísticas? Decidimos assimilar a cultura envolvente, adaptando-nos a ela e
evoluindo para estádios progressivos de desenvolvimento, ou optamos por uma
confortável ‘estabilidade’? Parecemos começar sempre do ‘zero’ ou valorizamos o
caminho percorrido? Aprendemos a valorizar o inconsciente, o inacessível,
abertos à surpresa, ou cedemos sempre à tentação de oferecer um receituário
definitivo e acabado? Damos tempo afetivo e empático à escuta personalizada e
humanizante da outra pessoa ou focamo-nos na obsessão de perguntas de
curiosidade e em fornecer respostas para questões que ninguém colocou? Teremos
de questionar se a nossa atenção se foca exclusivamente nas massas, com o
retorno de popularidade daí advindo, ou num exercício paciente ‘pessoa a
pessoa’?
Talvez o desenvolvimento seja um exercício maiêutico, de
fazer desabrochar, de desvelar e dar à luz a identidade de cada um e do tecido
social. Talvez esses resultados não se vislumbrem no tempo de duração de um
programa como o CLDS ou no período de uma legislatura. Talvez o risco, no caso,
seja sinónimo de perenidade. Talvez necessitemos de agentes que não queiram ser
heróis, nem mártires, mas somente artesãos pacientes e alfaiates pormenorizados
de uma costura de muitos pontos e com nós, ao menos, fáceis de desatar, para
que outros possam prosseguir a tecelagem.
O social parece ser uma realidade óbvia e passível de dar
por suposta. Ou não. Frequentemente é considerada de modo estanque. Veja-se,
exemplificativamente, quando se pensam as respostas social e de saúde como
realidades com distinções cerradas. Adianta-se a adivinha-se a hipótese do
‘social’ ser tudo, em 3D, inter-ativamente, num todo. A divisão em partes seria
uma simples metodologia, em função do foco e do desejo de eficácia. Sendo que
uma resposta que não o seja para o todo, simplesmente não é resposta social.
Como conciliamos a necessária submissão de cada indivíduo
ao bem comum com a valorização da sua identidade individual inviolável,
valorizando a diferenciação positiva? Distinguimos habitantes [que habitam] de
cidadãos [que participam] e fazemos esforço para que os primeiros se convertam
nos segundos? Gerimos o prevalecimento do todo sobre a parte ou alimentamos os
regionalismos institucionais, culturais e geográficos? Cada indivíduo é pensado
como parte de um todo ou refletido como átomo isolado? Fazemos esforços por
captar as implicações de uma visão sistémica da sociedade, onde tudo tem a ver
com tudo e todos a ver com todos, ou contentamo-nos com uma versão justaposta e
ocasionalmente inter-ativa, quando é inevitável e consoante o alinhamento dos
interesses? No que à economia diz respeito, talvez demasiadas vezes reduzida à
finança, o foco das dinâmicas é a sua paternidade pública, a sua maternidade
privada ou as pessoas e a sua capacitação emancipatória?
Finalizando, telegrafamos três opções estruturantes.
Pensar valorativamente as pessoas como o património,
auto-capacitadas pela educação e pela cultura,
Pensar, desenhar e operacionalizar ideias e projetos
sistémicos, plurais, amplos, de tendência perene, conjugando criatividade local
com ‘importações’ de excelência.
Pensar como tornar magnetizadoras as identidades locais e culturais,
abertas ao melhor do global, dinamizando um efetivo e afetivo sentido de
pertença.
Pensar… Parece teoria, mas é das mais fundamentais
práticas!
Luís Francisco Marques
Coordenador do CLDS 4G de Penacova
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