OPINIÃO - Eutanásia, palavras que talvez possam ajudar
Jamais consideraria a hipótese de ‘criticar’ a escolha
lúcida de alguém entender, racional, afetiva e cientificamente falando, que a
morte é a única solução razoável e digna para a sua vida. Diante da morte,
silêncio, máximo respeito, corpo curvado… E apenas perguntas caladas… A motivação
deste escrito é a votação no plenário da Assembleia da República de projetos de
lei que visam a despenalização da ‘eutanásia’, que à letra significa ‘boa
morte’ e que, na concretização prática dos textos da lei em equação, se
traduzirá em ‘ajudar’ a morrer alguém, com suporte e retaguarda médica, a
pedido da pessoa. Quem praticar tal ato, deixará de incorrer numa pena. Ou
seja, não se discute a licitude ética da prática, mitigam-se apenas as suas
consequências.
A ausência de debate foi, desta vez, a nota. Talvez porque,
agora, vários partidos com assento parlamentar inscreveram a questão nos programas
com que concorreram a sufrágio, realidade que não acontecera antes da última
votação e que fora usada como argumento para a tentar travar. À pressa,
organizaram-se agora algumas ‘trincheiras fundamentalistas’, mais para marcar
territórios e reavivar poderes ancestrais perdidos, que propriamente para
discutir cooperativamente o incremento da dignidade humana.
Acredito que confundir os conceitos mina a discussão,
inutiliza o debate, desmorona caminhos de futuro. Proponho desafiar a reflexão
de três ideias, que, uma vez inteligentemente tratadas, creio que gerariam
potenciais novas pontes e consensos diferentes.
1. Não sendo, de todo, especialista, creio que cumpriria uma
distinção jurídica entre despenalizar [o que se propõe, de facto],
descriminalizar e legalizar. Dado não serem conceitos sinónimos, clarificar a
sua diferenciação ajudaria o[s] posicionamentos[s], a compreensão do conteúdo
material e da letra da lei, bem como favoreceria um entendimento mais rigoroso
do seu alcance, facilitando, entretanto e finalmente, a sua compreensão.
2. Pessoalmente, gostaria também eu de morrer de morrer de
modo assistido, com a dor tratada, o sofrimento atenuado e o projeto de vida
reconstruído, em função das expetativas e da esperança real. Entendo por
‘assistido’ conceitos como acompanhado, amado, acarinhado, cuidado…
Naturalmente e até ao fim natural, valendo como pessoa até lá e contando, pelo
menos para os ‘meus’, como tal. Toda a morte deve ser, assim, assistida. Para
ser digna, ‘boa’, humana! Entendo que se morre mal. Já vi morrer mal, muito
mal! Desassistidamente. Neste sentido, parece-me que o termo ‘morte assistida’,
no caso o adjetivo qualificador, goza de uma ambiguidade considerável e de uma
gama hermenêutica tão ampla que confunde a sua compreensão. Assim, ‘morte
assitida’ sim e sempre! A questão emergente será ‘que assistência’.
3. Não convoco para a discussão milhares de horas e de
quilómetros vividas e percorridos em contexto hospitalar, no acompanhamento
diário de pessoas vulneráveis, com doença, e de familiares e profissionais
tocados até às entranhas por essa vulnerabilidade alheia. Entendo que a
discussão das possibilidades teóricas «arruma» o pensamento, mas que a nossa
racionalidade assume e prioriza distintas caraterísticas quando está marcada
pela dimensão afetiva. Deste modo, recordo [à letra, trago ao coração] os dias
compreendidos entre o mês de janeiro e o dia 19 de maio. Em quatro períodos de
internamento, o meu pai deixou de ter autonomia para comer e para se locomover.
Enfraqueceu capacidades cognitivas e limitou grandemente a sua dinâmica de
comunicar. Jantei com ele praticamente todos os dias nessa amplitude temporal e
entendíamo-nos num código muito próprio, marcado pela presença e pelo silêncio.
Em mais que um momento, diante do seu emagrecimento cavalgante e aparentemente
inexplicável, em função do que comia, apareceu a proposta de uma bateria de
exames invasivos. Manifestei-me sempre desfavorável. Pedi que lhe fossem
ministradas todas as medidas de conforto possíveis, controlando a dor, e assumi
que o sofrimento seria atenuado com a minha presença permanente. A medicina
poderia descobrir exatamente o que ele tinha, mas nada teria para oferecer como
tratamento proporcional, com um horizonte mínimo de esperança. A ‘obstinação terapêutica’,
‘Distanásia’, não só é má prática médica, como é eticamente reprovável. Alguns
dos que votarão com convicção a ‘despenalização da eutanásia’, creio que é
disto que estão a falar e é a perpetuação desta prática inútil que querem
evitar. Uma vez mais,a confusão de conceitos desajuda.
Como síntese, e em termos meramente sociológicos e
antropológicas, direi que matar não é solução de coisa nenhuma. Parece, antes,
uma renúncia à busca de caminhos, uma assunção de que a falência do sistema é
uma inevitabilidade a que temos de nos resignar. Não julgo nenhuma exceção, que
merece silêncio respeitoso, mas além do perigo resvalante, não me agrada uma
‘solução’ social sem retorno. Matar é algo distinto de deixar morrer! E ajudar
a morrer, uma inevitabilidade comum a todos, só pode equivaler a ajudar a viver
[o possível]! Se não cuidamos bem dos últimos instantes dos nossos, estes merecem,
ao menos, que os deixemos morrer em paz. Assistidos!
Luís Francisco Marques
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