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OPINIÃO - A solidariedade não é de ninguém


Instrumentalizar a ação social solidária representa um dos graus zero da insuficiência de ideias.

Não é sequer questionável o papel nuclear das Instituições Particulares de Solidariedade Social no cuidado de novos e velhos e na criação de emprego. Mas, sem Estado Social, traduzido nos depósitos mensais dos acordos de cooperação, o terceiro setor pura e simplesmente não existe. Ou existirá para ricos. Sem Estado, representado nas estruturas centrais e locais, as Instituições morrerão como estão, ao nível dos equipamentos e dos projetos, limitando-se a uma gestão casuística pouco mais que diária e de navegação à vista. Sem poder político, nomeadamente local e em regiões pequenas e periféricas, as Instituições perdem amplitude, estreitam as suas redes e enfraquecem a sua voz, asfixiando-se na sua escala reduzida.

De modo simétrico, é justo dizer que as Instituições Particulares de Solidariedade Social poupam orçamento de Estado, porque realizam um trabalho de cuidado de modo mais barato. Ninguém negará que o fazem tendencialmente melhor, sobretudo em razão da relação de proximidade com as comunidades. É, ainda, consensual, que, sem tal cooperação, o Estado Social colapsaria e teria de se reinventar de modo absoluto, porque manter todo este aparelho institucional na estrita dependência da gestão central seria incomportável.

De tais premissas, resulta uma conclusão lógica: Estado e Terceiro Setor [que se chama assim por não ser nem público, nem privado] são parceiros. Ambos gerem dinheiros públicos, de todos nós, para cuidar dos mais vulneráveis, colaborando com as famílias, que serão sempre os cuidadores primeiros e de referência. As poucas Instituições que geram receitas próprias, teriam de se tornar claramente privadas e elitistas, suportadas pelas famílias, se quisessem subsistir autonomamente. Ergue-se, assim, uma amplo organismo, chamemos-lhe associativo, que serve [e esta palavra não é negociável!] a pessoa e a sociedade.

Desta forma, bom seria pensar que um clima de confronto, brote donde brotar, não representa a luta de alguém contra um ‘inimigo’, mas sim uma guerra ‘desinteligente’ e fratricida. Salvo as exceções das estruturas claramente privadas, se isto é verdade nos grandes centros, é-o, por maioria de razão, nos territórios pequenos e periféricos. Trata-se de um entretém comunicacional, nem sempre nos fóruns mais adequados, que serve mais a popularidade das cúpulas, o arrebanhamento de séquitos e as conjunturas que habitualmente se desenham em paralelo com a solidariedade. Não serve, de todo, o futuro pensado e estruturado das instituições, o bem comum comunitário e, sobretudo, os mais vulneráveis [novos e velhos], que são o objeto absolutamente irrenunciável do trabalho de cuidado social.

A solidariedade não é propriedade de nenhum tipo de credo, nem é ‘doutrinável’ por nenhuma cartilha. É de Humanidade que se fala. E esse é um património comum. Se não conseguimos, nesta dimensão tão sensível e que a todos toca[rá], uma convergência inteligente, consistente e que sobreviva a humores ocasionais, a oscilações de comando e a oportunismos de circunstância, não vamos a lado nenhum como comunidade. Certamente que teremos sempre diversidade de opinião. Mas não a podemos manipular, consoante os interesses próprios, os lugares em que nos sentamos ou a paternidade/maternidade das ideias que são colocadas à discussão.

E há tanto e de tanta importância onde investir inteligência, criatividade, estudo, antes até que dinheiro! Uma gestão casuística, que vá resolvendo o dia a dia de uma estrutura não é hoje suficiente. E não está em causa o rigor, a ética ou a competência deste exercício. Em questão está a sua [des]adequação à contemporaneidade.

É comum referir-se que ninguém entra num lugar sem lhe conhecer a história. Quando se regressa convém refazer despreconceituosamente este exercício de reconhecimento, na consciência de um argumento que parece elementar: a terra regenera-se e não é nunca a mesma de antes, por muita vontade que se tenha que assim seja. Desatender a este pormenor pode significar vender vazios, empacotar o vácuo, numa cosmética argumentativa de caserna que corresponde [ou não] apenas unicamente ao imediato. E assim fazemos nascer coisas mortas ou de limitada validade. Cansar a paciência em questiúnculas de ocasião é um cansaço inútil, que resulta mais da pouca vitalidade que propriamente do excesso de afazeres.

Quem, como e onde se pensam projetos para ação social a 20 anos? Assumindo inequivocamente que todos os intervenientes gerem com rigor e ética os dinheiros destinados à solidariedade, a diferenciação talvez devesse residir aqui. Como se preparam programas de formação humanista e técnica de trabalhadores e de dirigentes, nomeadamente capacitando vagas novas destes últimos, assumindo que se trata de um serviço transitório e não de uma profissão definitiva? Sobretudo em territórios de periferia, as instituições, para lá dos equipamentos, devem assumir como imperativo a constituição de equipas de excelência. Onde estão os gabinetes de criatividade, que estudem e desenhem novos projetos, atraiam financiamento, ‘vão a jogo’ em todas as candidaturas possíveis? A simples gestão do dia-a-dia, necessária e difícil, ninguém o negará, hipoteca o futuro se não tiver como paralelo esta outra atividade de mais longo alcance. Onde estão as pontes com o saber científico, nomeadamente universitário, bem como a capacidade para tornar o nosso território laboratório de investigação académica? Trazer ciência para a ação solidária fundamentará as dinâmicas, acrescentará competência e alargará os horizontes. Onde estão os caminhos consistentes no sentido de criar receitas alternativas e próprias para a intervenção de cuidado social, para que esta não pense o futuro sustentada apenas no financiamento estatal e assumindo que a mesma não sobreviverá somente com as prestações das famílias? Também daqui dependerá a viabilidade e a liquidez das instituições. Certamente que a lista não é exaustiva e absoluta. Seguramente que muitas destas preocupações [e outras] ocupam a mente dos protagonistas. Ainda assim, desviar a energia de focos essenciais é uma mau investimento de forças.


A solidariedade não é propriedade de ideologias, credos ou rostos protagonistas. Todos estes elementos podem acrescentar valor e enobrecer a ação solidária. Ou podem ser um obstáculo à qualidade da mesma, sobretudo quando apontam o foco para si próprios. Esta escolha não é inocente ou inócua. Algumas opções até podem parecer render a curto prazo, mas são o óbito antecipado de um futuro que se quer adequado. E a sociedade e, nesta, os ‘últimos’, periféricos e frágeis, que têm de ser a opção preferencial da ação social solidária, clamam, mesmo calados, por mais. E têm direito a isso.

Luís Francisco Cordeiro Marques



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