COVID 19 - Alto risco no outono. Governo revela plano de ataque
Peritos alertam para subida de casos três semanas após o
início das aulas. Ministério promete reforçar cuidados intensivos e
laboratórios e apostar em teleconsultas para doentes não-covid. Vacina da gripe
será antecipada
O grupo de peritos que trabalha com a Direção-Geral da Saúde
(DGS) na elaboração das projeções sobre a evolução da pandemia alerta que o
número de infetados deverá começar a subir significativamente três semanas após
o início do próximo ano letivo, que arranca a 14 de setembro.
“Numa fase
inicial, esse aumento poderá ser exponencial, sobretudo nas zonas com maior
densidade populacional, nomeadamente Lisboa e Porto”, avisa Manuel Carmo Gomes,
professor de epidemiologia na Universidade de Lisboa e um dos principais
colaboradores da equipa de peritos da DGS e do Instituto Ricardo Jorge. “O
perigo vai começar em outubro e até fevereiro vamos estar sempre debaixo de
grande risco, porque as pessoas passam mais tempo em ambientes fechados, tentam
manter as suas atividades profissionais, os transportes estarão a funcionar e
as aulas a decorrer.”
O que está a acontecer no Hemisfério Sul, que já entrou no
inverno, está a fazer soar o alarme, mostrando que o embate será duro. Esta
semana, a Austrália voltou ao confinamento, isolando cerca de cinco milhões de
pessoas. Brasil, Argentina e África do Sul enfrentam grandes dificuldades e os
especialistas acreditam que o vírus da gripe ainda nem sequer alcançou
expressão significativa.
A circulação do SARS-CoV-2 em simultâneo com o vírus da gripe,
que todos os anos provoca enchentes nas urgências, está entre o que mais
preocupa os especialistas, pela pressão que irá exercer sobre o SNS. O
Ministério da Saúde está agora a ultimar o “plano de ataque” para o
outono/inverno, depois de ter reunido com todos os hospitais e Administrações
Regionais de Saúde. Ao Expresso, o gabinete de Marta Temido anuncia algumas das
medidas, como a antecipação já para o início de outubro da vacinação contra a
gripe sazonal, com prioridade para os profissionais de saúde e funcionários de
lares. Está ainda a ser equacionado o seu alargamento, gratuito, a grávidas e
novos grupos de risco que ainda vão ser divulgados. No total, foram adquiridas
dois milhões de doses, mais 38% do que em 2019.
Dada a semelhança de sintomas entre os dois vírus, há um
grande receio que haja um enorme afluxo aos testes e que isso signifique maior
demora nos resultados. Por isso, um dos pilares do plano será também “a
expansão da capacidade da rede de laboratórios para diagnóstico do SARS-CoV-2”,
o que exige um investimento de €8,4 milhões, segundo o Ministério. E para
assegurar a disponibilidade de kits de testagem, extração e zaragatoas, a
Reserva Estratégica Nacional será monitorizada diariamente.
“Neste momento, está a ser definida a segunda fase da
reserva centralizada de medicamentos, equipamentos de proteção individual e
reagentes e já foram abertos vários concursos”, garante ao Expresso o gabinete
de Marta Temido, que avança ainda que serão feitas obras para garantir o
reforço da capacidade da medicina intensiva e laboratorial “no próximo
outono/inverno”.
Vacinação da gripe será alargada a grávidas, funcionários de
lares e novos grupos de risco
O ministério reconhece que “a provável coexistência da
covid-19 com outras infeções respiratórias implicará um ajustamento dos planos
de contingência dos hospitais”. O fundamental é que a atividade com doentes
não-covid seja o menos afetada possível, através de uma “forte aposta na
teleconsulta e na teleconsultadoria”. Também para evitar idas aos hospitais,
os medicamentos de dispensa exclusiva hospitalar passarão a ser dados nas
farmácias ou diretamente em casa dos doentes.
Embora não dê detalhes, Marta Temido quer reorganizar a Rede
Nacional de Medicina Intensiva, reforçando o número de camas, através de obras
de ampliação. Será alterada a organização de salas de espera, refeitórios e
outros espaços comuns dos hospitais, para reduzir capacidades, garantindo a
proteção dos profissionais — muitos dos quais passarão a estar em teletrabalho
para “diminuir a exposição das equipas”.
O maior desafio será a contratação de médicos e enfermeiros,
já que estes são escassos no mercado de trabalho. O ministério diz que “está
munido dos instrumentos legais que lhe permitirão, em matéria de recursos
humanos, fazer face a um aumento da procura de cuidados de saúde”. E
sublinha que desde o início deste ano foram contratados mais 1328 enfermeiros e
que mais o serão até setembro.
“Vem aí o inverno e precisamos de estar preparados.
Estamos todos cansados, ninguém gosta de usar máscara e é inevitável que haja
um relaxamento natural e progressivo. O nosso sistema imunitário estará mais
enfraquecido, e rapidamente pode tudo complicar-se”, avança João Paulo
Gomes, investigador responsável pela área de genómica e bioinformática do
Instituto Ricardo Jorge.
DAR UM PASSO ATRÁS
Segundo Manuel Carmo Gomes, “há três aspetos que vão
condicionar uma segunda onda em Portugal: a imunidade da população, o
comportamento das pessoas e a rapidez de resposta da saúde pública”. Uma
vez chegados ao outono, “há vários indicadores que farão soar o alarme de
entrada numa curva ascendente”, explica. Por exemplo, se o R estiver
claramente acima de 1 durante uma semana, situação que deverá ser confirmada
pelo aumento exponencial de casos. “Estamos com subidas diárias abaixo de
1%, mas se a taxa disparar para o dobro ou o triplo de forma consistente temos
de agir.”
Frisando que “não há números mágicos” para saber
quando tomar medidas, o especialista explica que será preciso olhar para os
vários indicadores e perceber, por exemplo, se a subida de casos se estende ao
país inteiro ou se é restrita a uma área geográfica. “As medidas a tomar
nessa altura dependem da situação. Tal como aconteceu na região de Lisboa,
poderá ser necessário dar algum passo atrás, mesmo que não seja para o total
confinamento. Há um grande gradiente de medidas possíveis”, afirma Manuel
Carmo Gomes.
Entre outubro e fevereiro Portugal estará sempre em grande
risco, avisam peritos
Uma subida exponencial de casos terá impacto direto no SNS:
uma média de 60 hospitalizações por dia, ao longo de três ou quatro semanas,
deverá resultar num pico entre 900 a 950 internamentos em simultâneo, dos quais
15% em cuidados intensivos, adianta o perito. Ainda assim, esse pico ficaria
distante dos mais de 1200 internamentos registados entre final de março e
início de abril. “Tenho esperança de não atingirmos esse cenário.
Precisaríamos de um fluxo mínimo diário de 75 a 80 internamentos hospitalares
contínuos durante aproximadamente um mês para lá chegar”, aponta.
A velocidade com que os hospitais se enchem dependerá das
características dos primeiros doentes a serem infetados. Se tiverem mais de 70
anos, o ‘pico’ de internamentos pode ser atingido em duas ou três semanas, mas
se forem jovens em idade escolar ou entre os 20 e 55 anos será mais lento. O tempo
de permanência no hospital varia muito com a idade: em média, as pessoas com
menos de 50 anos estão cerca de 12 dias internadas, enquanto que quem tem entre
50 e 69 anos está cerca de 15. “Estes tempos agravam-se significativamente
quando o doente requer assistência em cuidados intensivos”, avisa Manuel
Carmo Gomes.
Os hospitais não escondem a preocupação. “Estamos a
preparar o inverno e o reforço de recursos humanos é vital. Não conseguiremos
enfrentar uma nova fase com o mesmo nível da anterior porque teremos maior
afluência de doentes com outras patologias. Numa catástrofe, resta-nos
suspender tudo para atender o imediato, o que terá custos elevadíssimos”,
alerta Daniel Ferro, presidente do conselho de administração do Centro
Hospitalar Lisboa Norte, que integra o Santa Maria, um dos maiores hospitais do
país.
O segredo de não ter havido rutura hospitalar em Portugal
tem, na opinião deste responsável, duas razões com as quais já não se poderá
contar neste inverno: a suspensão quase completa da atividade e o medo dos
doentes em recorrer aos hospitais. Só no Santa Maria 2500 cirurgias ficaram por
fazer, situação que Daniel Ferro recusa-se a repetir: “Teremos que evitar
que o impacto seja tão forte.”
Mas estarão os profissionais de saúde dispostos a repetir os
sacrifícios, sem que lhes seja dado qualquer benefício suplementar? O diretor
clínico do Santa Maria, Luís Pinheiro, é claro: “Não é concebível que se
peça às pessoas para fazer mais pelo mesmo. Se precisamos que façam um
sacrifício adicional, têm de ser encontradas formas de que isso seja
reconhecido. Se houver trabalho extra, este tem de ser valorizado
financeiramente.”
COM VERA LÚCIA ARREIGOSO
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