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MEMÓRIAS - O Enterro do Bacalhau

Em Penacova (1932)

Depois de alguns anos de interregno e apesar de algumas peripécias de última hora, Penacova assistiu em 1932, já lá vão 80 anos, ao cortejo carnavalesco conhecido por "Enterro do Bacalhau". Não em Sábado de Aleluia, como era habitual, mas na Segunda-Feira da Páscoa. Páscoa que em 1932 foi no dia 27 de Março, como podemos verificar nos calendários da época.

É que a anunciada Comissão formada por José Vizeu, Albino dos Santos Júnior, Fernando de Almeida e Alípio Rodrigues de Oliveira não obteve - por razões que desconhecemos - a necessária autorização do Administrador Concelhio. No entanto, outra comissão se constitui e levou a efeito o evento, certamente já em estado avançado de preparação, na 2ª feira à noite.


Refere a imprensa local que "o cortejo, bem apresentado, conseguiu despertar a curiosidade do público numeroso que se juntou para assistir ao desfile". O cortejo ter-se-á formado no Largo do Terreiro seguindo até ao Cruzeiro e voltando ao ponto de partida. Teve como oradores José de Castro Pita e Eduardo (Russo). Este "com graças felizes e voz apropriada" agradou aos presentes. Também José de Castro Pita fez lembrar "os saudosos tempos em que o seu pai desempenhava, com a sua conhecida eloquência, o mesmo papel".

Esta tradição muito antiga ainda hoje é revivida em vários pontos do nosso país. Trata-se de uma representação teatral, uma peça popular de cariz marcadamente pagão que percorre as ruas no sábado de aleluia à noite, terminando próximo da meia noite, momento em que é servida uma grande ceia de bacalhau a todos os presentes.

Não temos pormenores sobre esta manifestação popular em Penacova, além de pequenos recortes de jornais e de uma fotografia devidamente legendada que nos dá uma ideia do desfile junto aos Paços do Concelho. 


Esta tradição do "enterro do bacalhau" marcando o fim da quaresma insere-se, também no conjunto de manifestações carnavalescas: cabeçudos, caretos, danças rituais, "serração da velha", "queima do Judas" e cortejos oficiais.

Parece que a tradição do "Enterro do Bacalhau" remonta ao século XVI, durante o movimento da Contra-Reforma. A Igreja proibia o consumo total da carne durante a Quaresma mas abria um precedente a todos aqueles que comprassem a bula. Este indulto só servia os que o podiam pagar, enquanto os desfavorecidos, teriam de se socorrer do peixe na sua alimentação durante a quaresma. O peixe mais acessível era o bacalhau. Então, o povo revoltou-se, mas antes de se render, terá criado esta e outras manifestações.  

Em Soutocico (Leiria)

Deixamos também aqui um apontamento sobre esta tradição revivida na região de Leiria.

O cortejo fúnebre "Enterro do Bacalhau", tradição de riquissimo valor cultural que se perde nos anais do tempo, é representado pelas gentes do lugar do Soutocico, numa manifestação teatral com cerca de duzentos figurantes. Esta peça popular de cariz marcadamente pagão, percorre as ruas da aldeia no sábado de aleluia e inicia-se por volta das 21:30 horas para terminar próximo das 24 horas, altura em que é servida uma monumental ceia de bacalhau a todos os presentes, sejam dos actores ou simplesmente espectadores.

Representado em 1938 pela 1°. vez no lugar do Soutocico, constituiu tal êxito, na altura, que passou a ser o ex-libris histórico-cultural das pessoas da povoação, não obstante o mesmo ter sido proibido pelo regime de Salazar, a pedido das Instâncias Religiosas.

Quando aconteceu em Abril de 1974, as saudades do "Enterro do Bacalhau" eram tantas que o Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico decidiu reeditar o evento, fazendo para tal uma pesquisa apuradíssima. Reunidas, pois, as condições necessárias para a representação, e muito embora as autoridades religiosas voltassem a manifestar-se contra, certo é que voltou ás ruas por mais quatro vezes entre 1977 e 1983. Curiosamente, era nas gentes mais simples e convictamente ligadas á igreja, que mais se fazia sentir o entusiasmo transbordante pela representação da peça.

A tradição do "Enterro do Bacalhau" parece remontar ao século XVI, durante o movimento contra-reforma. Sabe-se que o Concílio de Trento, conferindo á Igreja Católica o poder centralizado e o autoritarismo que possuia antes da Reforma de Lutero e Calvino, levou a que a nova Inquisição combatesse em força as chamadas heresias, independentemente da perseguição aos dos Evangelhos atrás citados. Esta Igreja que proibia o consumo total da carne durante a Quaresma, abria um precedente a todos aqueles que comprassem a bula. Este indulto só servia os mais abastados, que o podiam pagar, enquanto os desfavorecidos, a grande maioria afinal, teriam de se socorrer do peixe na sua alimentação durante as sete semanas da quaresma. O peixe mais acessivel era o bacalhau. O povo revoltou-se contra esta determinação, mas teve de abdicar, não sem que antes criasse esta festividade pagã, como sentimento de revolta pela sua impotência.

O bacalhau implantou-se assim nos lares dos pobres, sendo o seu salvador. Cozinhado de mil maneiras diferentes, ele foi absoluto durante o período da Quaresma findo o qual o tribunal fantoche dos filhos o julgou e o condenou a morte, por inveja da sua popularidade. O advogado de acusação, o traidor "Filho da Maria Malvada", cujas origens eram de um mero filho do povo, fundamentou o seu ataque no facto de, durante o período de abstinência, só lhe ter calhado do mal-cheiroso, do escamudo, do mal-curtido, do rabo e asa, etc.

Esta traição enraiveceu uma vez mais toda aquela gente simples que, durante o cortejo, pede a sua cabeça, para que se faça justiça ao bacalhau.

Os três principais sermões: "Vida e Morte do Bacalhau", "Testamento do Bacalhau" e as "Exéquias do Bacalhau", formam com as quadras cantadas ao som da marcha fúnebre de Chopin, um espectáculo digno de ser visto. Para além dos três sermões apontados, é tradição do Soutocico, a queima do Judas, no mesmo dia e após o enterro. Logo que o bacalhau desce á cova, segue-se um sermão ao Judas que começa "...São Cipriano por Belzebú te invoco, pote das almas, toucinho crú, bruxas do inferno, luzecus do além, penas de corvo, sangue de frango, louvo o tranglomano, para sempre louvado, pater, filho e espirito sentado ..."

Seguidamente, o Judas é queimado e rebentado entre alaridos e gáudio da multidão.


I


Batem sinos nas capelas

bandeiras a meio pau

moços velhos e donzelas

ponham luto nas panelas

que morreu o bacalhau


II


Com dinheiro havia a bula

Nesse tempo tão sacana

Uns podiam comer carne

e outros só a barbatana


III


Sou um pobre desgraçado

e valho pouco dinheiro,

Peço que me enterrem.

Á rota de um taberneiro


IV


E quando de mim há falta

neste mundo rancoroso

sou sempre um escondido,

como sendo um criminoso


V


Foi Pilatos; teu amigo

e Caifaz teu redentor

de que recebeste patacos

para entregar o Senhor


VI


Já  com os trinta dinheiros

em afeição derradeira

foste acabar enforcado

nos braços de uma figueira


Quando após muito tempo se fala, ainda que ao de leve, em apresentar ao povo o "Enterro do Bacalhau", de novo a população se transforma e a giganta, prende de satisfação e metamorfoseia a monotonia dos seus dias simples na encenação de algo de belo, envolvente, artístico e de uma imponência espectacular. Os ensaios á noite, depois de longa jornada, de trabalho, poderiam tornar-se fatigantes, porém a força de vontade e o querer participar nesta festa tão arreigada á gente do Soutocico, ontem como hoje, tudo transcende.


Imagine-se a descida, da calçada, no centro, do lugar, em sábado de aleluia á noite, com, um matizado fantástico dos coloridos trajes, grotescamente iluminados pela, infinidade de archotes que acompanham o cortejo. A definição só pode ser uma: esplendoroso! Ultrapassa tudo quanto há de imaginável em teatro popular de rua (http://leiria.tripod.com/lendasbac.html)



Por David Almeida