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REFLEXÕES - [Des]coincidências sobre a [ir]realidade



Havia um certo buraco, no percurso sinuoso da estrada, onde não circulam os animais de outrora, onde escasseiam os veículos da modernidade e onde os transeuntes de antanho se ausentaram, em razão da sua progressiva deterioração física e da consequente diminuição de mobilidade. Existiam ainda pedras caídas, na viela onde já poucos circulam, a dificultar o trânsito dos automóveis que já não visitam aquele lugar. Observavam-se, por fim, árvores caídas, nos caminhos que conduzem aos terrenos por cultivar, à floresta de que poucos cuidam, à natureza sem gente. Reivindiquemos, a quem de direito, em ofício próprio, com cabeçalho formal e destinatário enunciado segundo o protocolo. Entretanto, silêncio, a ver se a ‘não resposta’ alheia pode legitimar a nossa indignação!

Em paralelo, sonhemos sonhos bem sonhados e peçamos a quem de direito que financie. Se sim, seremos os génios do sonho operacionalizado. Se não, continuaremos a reivindicar a genialidade do sonho, restando para quem não financia o óscar pouco apetecível e diabolizado da ‘não operacionalidade’.

São paradigmas que não se distinguem ideologicamente, nem são exclusividade de nenhuma estrutura, sendo transversais a todas as propostas mais comuns. Pode divergir-se apenas na capacidade de observar mais buracos, pedras, árvores caídas ou, eventualmente, no conteúdo dos pedidos que fazemos a terceiros. Talvez exista complementarmente alguma distinção na capacidade de perceção do retorno que se possa capitalizar com a opção por sinalizar ‘aquele’ buraco, ‘aquela’ pedra caída, ‘aquela’ árvore tombada, ‘aquele’ local de construção do sonho… Imaginando o melhor dos mundos, aquele em que tudo se consegue, podemos antecipar como o território perfeito aquele em que todos os buracos estão tapados, todas as pedras repostas, todas as árvores removidas.

Ou talvez não! Recorrendo ainda à imaginação, tal convencimento poderia concretizar-se em estradas exemplares, mas onde não circulam pessoas, em muros robustecidos, mas que nada sustêm, em caminhos agrícolas e florestais, mas sem atividade agrícola e florestal. Pelo meio, o síndrome da ‘reunionite’ crónica, de insuficiente agenda e deficiente operacionalização. Para que conste. Múltiplo estudo sobre o que fazer, esquecendo um pormenor tão relevante como a execução. Troca de galhardetes, devolução de culpas, mais como encenação protocolar de ocasião e menos como discussão da melhor, não da única, alternativa para fazer o bem comum que todos queremos. Em paralelo, a esquizofrenia da formalidade protocolar, em gente que se conhece e se trata por tu, a imitar uma escala humana e territorial que não é a nossa, em nome de um estatuto oco e de uma formalidade burocrata.

Nos intervalos acontece a vida a sério. Sempre com/para pessoas de verdade. Com necessidades do âmbito fisiológico: respirar, comer, beber, dormir, agasalho; da esfera da segurança: emprego, saúde, cuidado e proteção, habitação, propriedade; das áreas sociais: educação, cultura, viver em família, estabelecer relações de amizade; do campo da estima: confiança, auto estima, respeito pelos/dos outros; do quadro da auto realização: crescimento pessoal, autonomia, perspetivação e assunção de desafios…

Tudo isto é profundamente ‘político’, no sentido forte e original de arte de construir a ‘cidade’ [pólis, no grego], que deve ler-se aqui como sinónimo de território e profundo exercício de cidadania [civis, cidadão no latim; civitas, cidade no mesmo idioma]. Menos que isto, é desumano e impessoal, formalismo e entretenimento social, mesmo que seja inquestionável a legalidade e a legitimidade das opções, bem como a bondade dos protagonistas e das respetivas intenções. A teatralidade habitual, de consumo tão rápido como o hipotético almejado retorno já cansa o público. Provo-a o alheamento abstencionista. Estamos em crer que também desgasta os protagonistas habituais. A pergunta sobre o porquê da manutenção deste registo persistir tem de ecoar. E as respostas não serão simples e definitivas.

Suscitar fome de mais também é tarefa, mesmo se impopular. Pela razão nobre que o inverso hipoteca o futuro. Pela razão óbvia que sugere que ‘betão e alcatrão’ só fazem sentido para e com pessoas. Pela razão pragmática que intui que uma mesma ementa servida incessantemente atingirá um lógico ponto de saturação. Assim, do urgente, que suscita um idealmente ágil e necessário exercício de manutenção, há que passar ao estrutural, convocando o envolvimento de pessoas, cimentando sentidos de pertença e gerando dinâmicas consequentes. Não o fazer, pode significar contentamento ou resignação com o estado de coisas. Podemos ainda pensar que formar pessoas nos obriga a fazer diferente e a arriscar o nosso protagonismo. Finalmente, talvez nada disto faça sentido e todas as eventuais semelhanças com alguma realidade seja simples coincidência.

 Luís Francisco Marques




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