REFLEXÕES - Pertenças




O adágio que situa a virtude no meio constitui costumeiramente uma circunstância de mornidão que a sabedoria bíblica convida a vomitar. Como não é aritmeticamente ajustável, pronuncia-se em nome de um equilíbrio moralista de dúbia fundamentação, em razão de uma prudência de tendência demissionária, talvez alicerçado numa renúncia ao exercício da escolha, para não acicatar antagonismos. A ilusão é que tudo fica na mesma, sem cair na conta que este é um estado irreal. ‘Na mesma’ significa degenerescência. No limite, morte. Esta aparente ‘não escolha’ revela-se, na realidade, uma escolha sociologicamente patológica, que, a pretexto de não ‘agitar’ a realidade, perpetua ‘protagonismos empoeirados’ ou abre vagas a ‘protagonistas auto centrados’.

Mas ‘estar no meio’ é um desafio incontornável e imperioso. Não tanto esse ‘meio’ do cálculo e da tática moralistas, mas o ‘meio envolvente’, cuja construção protagonizamos partilhadamente, que nos ajuda a ser o que somos e que é um connosco. Pertencer ao espaço e ao tempo, ao lugar e à cultura, ao contexto e ao pormenor.

De um lado, a exacerbação da autonomia do sujeito. ‘Não ser de nada nem de ninguém’, ‘pensar exclusivamente pela própria cabeça’, fazer simplesmente o que se quer, numa liberdade desregulada onde aos direitos não correspondem deveres. De outro, o que alguns chamam o ‘terror do idêntico’, onde a diferença e o diferente não têm espaço, numa monotonia social monocórdica que tudo reduz à igualdade, mesmo a diferença, e não admite o discernimento do caso concreto, sacrificando-o ‘facilitisticamente’ ao princípio geral. Trabalhar o sentido de pertença é, pois, um empreendimento obrigatório num território geográfico, social e humano marcado pelo labirinto da dispersão, pelo emaranhado do desencontro, pela tacanhez teimosa e desinteligente do isolamento.

‘Ser de algo ou de algures’ é um dado constitutivo da pessoa. Ninguém é sem pertenças. Uma família, uma terra, um clube, um partido… Todas as vinculações possuem uma dimensão de racionalidade, no quadro da qual as motivações precisam de ser fundamentadas, pensadas, aprofundadas, dialogadas, confrontadas, revistas. Têm outra dimensão onde a racionalidade assume um papel secundário e a afetividade ganha destaque. Neste horizonte entra o ‘treino’, a efetividade, o hábito. Ninguém pode ‘ser de algo ou de algures’ apenas ocasionalmente ou simplesmente sem razões para tal. Deste modo, a construção do espaço público acontece com projetos razoáveis [pelo menos], amplamente dialogados, riscados e arriscados, com consenso e dissenso. Faz-se, em medida simétrica, de afetividade umbilical, de garra congregadora, de ‘lata’ positivamente ingénua e efervescente. Quem é uma coisa e o seu contrário, quem prefere o irritante e atrofiante prudência na espera da perfeição para ser e fazer, quem adere por amiguismo ou concorda por simpatia, para logo ‘desamigar’ ou discordar ‘porque sim’, apenas porque mudam os protagonizadores das ideias ou iniciativas… Quem escolher este modo de ser precisa de fortalecer os seus vínculos de pertença, os quais, de tão débeis, vão sucumbir à sedução de quem lhes acenar com aparências de facilidades instantâneas e de lucrativo retorno.

Somos de Penacova! E isso é identidade criativa, racionalidade crítica, prática e fundamentada, e afetividade comprometidamente vinculada. Precisamos de um claro crescimento no sentido de pertença a este espaço cultural, hoje multicultural e a precisar de ser inter-cultural, com expressão maior nos alunos africanos da Escola Beira Aguieira, que habitam de modo evidente [quase exclusivo!] o centro da Vila de Penacova.

Um primeiro desafio pode passar por parar e pensar. Parece inatividade, mas é o que torna fecundo o ativismo prático, veloz, reclamado e consumidor das agendas. De contrário, o risco é redundar numa esterilidade de mera ‘navegação à vista’, feita de acasos e ocasionalidades. Daqui resultará uma compreensão mais aprofundada da nossa escala territorial, para concluir que ela é humana e próxima. Como tal, não pode ser desumanizada, burocratizada, formalizada. Sempre que queremos imitar uma ‘cidade grande’, não na qualidade do que fazemos, mas na ‘máquina metodológica’ que montamos, caímos num ‘provincianismo parolo’, que não entende que aqui tudo se pode ‘decidir agilmente’, a partir do paradigma da vizinhança, da possibilidade de contacto pessoal, do diálogo que está para lá da agenda e da ordem de trabalhos formal. Sempre que erguemos exercícios de poder egocentrados, alavancados em táticas de bastidores dúbias e fulanizadas, esquecemos que nos espaços pequenos não há ‘bastidores’ e que, mais dia menos dia, nos cruzamos todos num qualquer ‘passeio de rua’. Assim, que se valorize de modo operacional o que o pequeno tem de bom!

Uma inteligência estratégica poderá suscitar a intuição de se assumir o Concelho como uma ‘realidade policêntrica’: a Vila de Penacova, com a ‘cintura urbana’, a zona de Carvalho, o chamado Baixo Concelho e o denominado Alto Concelho pode ser um desenho. Uma consequência desta configuração poderia ser a não multiplicação mimética e ‘negativamente bairrista’ de projetos e a tendência para a concentração de ‘especialidades’ e respetiva partilha das mesmas.

A comunicação é outro dado contemporâneo incontornável. Deseja-se informativa e formativa, livre, denunciadora e profética. Na nossa população concreta, parece que uma publicação clássica, ‘em papel’, talvez pudesse ter lugar, como rede congregadora, pese a surpreendente e inquestionável qualidade do ‘Penacova Actual’. Nomeadamente para que este jornal digital ganhe ainda mais amplitude, mas também para preencher de ética, critério e fundamentação a informação democratizada das redes sociais, a ‘transição digital’ tem de ser um imperativo comunitário. Talvez as Juntas de Freguesia possam ser serviços de maior proximidade e itinerância e não apenas centralizadores à sua escala. Eventualmente as Associações podem converter-se em efetivamente locais, sem desfilar um conjunto de atividades [por exemplo, gastronómicas] iguais em toda a parte. Quem sabe as IPSS’s, mormente com os Serviços de Apoio Domiciliário, podem também desempenhar aqui uma tarefa de capacitação de cidadania. Todos, na nossa escala de proximidade, poderemos certamente fazer algo, sem esperar obcecadamente pelo decreto ou pelo subsídio da tutela, para que alguma mudança aconteça.

A cultura é sempre o espaço de gestação das mudanças. Das que valem e tocam a profundidade, mesmo que não se pese ou meça o resultado, ou que que este não seja ‘colhido’ no ‘nosso tempo’. Assim, a assunção de uma cultura de verdadeira identidade, ao invés da reprodução ‘competitiva’ dos mesmos modelos pode ser um caminho. Implica, entre outras coisas, memória e criatividade. Como exemplo, podemos apontar as ‘festas dos lugares’, refletindo há quantas décadas se repetem os mesmos programas e questionando se eles ainda ‘respondem’ às comunidades contemporâneas. Neste sentido, que se atraia o melhor do conhecimento atual, criando programas e gerando hábitos, sem resignação ao ‘aqui não funciona’ ou ‘não vou a essa atividade porque é feita por eles’.
Para que algo efetivamente cresça importa a consciência de que todo o crescimento se reveste de dores. Como tal, os que protagonizam decisões precisam de perder as expetativas da unanimidade e não podem ficar obsessivamente reféns de uma popularidade obtida à custa da oferta assistencialista de ‘pão’ e ocasional de ‘circo’.

Luís Francisco Correia Marques


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