Multiculturalidade, tolerância, diálogo e hospitalidade
“Trata-se, no fundo, de um conjunto de atitudes que podem ir
da rejeição do outro até à simples tolerância entendida como condescendência ou
mesmo até à tolerância entendida como hospitalidade.” Este é um dos grandes
[talvez o maior] desafios sociais de Penacova nas próximas décadas.
O Penacova Actual desafiou o Professor João Maria André para
uma colaboração exclusiva, que muito nos orgulha pela profundidade e
criatividade do seu pensamento. Com vastíssimo currículo, escolheu Paradela da
Cortiça para residir, é Professor Catedrático da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, na área dos Estudos Artísticos e da Filosofia, e
possui uma ampla carreira no teatro, nomeadamente como encenador e dramaturgo.
Vivemos num mundo incontornavelmente multicultural. Essa
multiculturalidade tem vários fatores que a potencializam, marcando-a cada um
deles com características muito próprias.
O primeiro desses fatores, que não é novo mas que se tem
vindo a intensificar nas últimas décadas à escala global, tem a ver com os
movimentos migratórios, seja por razões económicas, seja por razões políticas,
como é o caso dos refugiados. Os povos não se veem confinados nas suas
fronteiras, mas indivíduos, famílias e grupos de cada cultura deslocam-se,
transportando consigo costumes, línguas, vestuário, alimentação, valores,
expressões artísticas e práticas sociais muito distintas, que impregnam de uma colorida
diversidade qualquer localidade em qualquer parte de mundo. E se na década de
’60 fomos nós a emigrar, procurando trabalho em França, na Alemanha, nos
Estados Unidos ou no Canadá, para não citar senão apenas alguns casos, hoje emigram
ainda os nossos compatriotas por razões idênticas para outros países, mas
entram no nosso país outros cidadãos, e com eles as suas culturas, provenientes
da Europa, da América do Norte e do Sul, da Ásia e de África, transformando
Portugal num país fisicamente multicultural pela diversidade daqueles que nele
habitam.
Um segundo fator que potencializa a multiculturalidade é a
sociedade em rede, nomeadamente com o desenvolvimento das comunicações à
distância, de que se destaca atualmente a internet. Isto significa que para acedermos
a outras culturas não necessitamos de entrar em contacto físico com elas, mas
podemos contactar com as suas expressões na WEB, sob a forma de música, de
filmes, de publicidade, de notícias e de todas as expressões simbólicas das
culturas.
O terceiro fator que potencializa a multiculturalidade atual
é a globalização ou, para sermos mais rigorosos, as globalizações, dado que há
mais do que um tipo de globalização: a globalização neoliberal é a globalização
dominante, mas as ONGs, as campanhas para salvar o planeta das consequências
das alterações climáticas, as ações de solidariedade com grupos e povos
oprimidos, são também formas de globalização não predadora como parece ser a
globalização económica neoliberal.
A realidade da multiculturalidade pode desencadear atitudes
muito distintas: o medo face à diferença e relativamente àqueles que podem ser
vistos como uma ameaça para o nosso emprego e a nossa economia (xenofobia); a
indiferença, resultante de um fechamento de cada um dentro do seu próprio
mundo, alheando-se assim daquilo que nos rodeia; o respeito, reconhecendo que
todos somos humanos, todos temos as nossas culturas e as nossas especificidades
e, não havendo atropelo dos direitos humanos, cada grupo e cada povo tem
direito a viver as suas tradições culturais e a celebrar os seus valores e as
suas diferenças; finalmente o diálogo, que supõe o acolhimento caloroso do
outro, a capacidade de o ouvir, o interesse em o conhecer e em conhecer a sua
cultura e a vontade em interagir com ele. Trata-se, no fundo, de um conjunto de
atitudes que podem ir da rejeição do outro até à simples tolerância entendida
como condescendência ou mesmo até à tolerância entendida como hospitalidade.
Se a capacidade de suportar o outro é apenas uma atitude de
condescendência que assenta num sentimento de superioridade etnocêntrico e na
ideia de que somos tão bons que até podemos condescender com os que são
diferentes de nós, apresentando-se assim
como uma forma negativa de tolerância, já a capacidade de dialogar com os que
são culturalmente diferentes de nós, de tentar conhecer os seus costumes e
aprender as suas histórias e as suas características, absorvendo mesmo o que
têm complementar em relação anós, transforma a tolerância numa forma de
exercício da hospitalidade que é um património inquestionável das duas grandes
tradições que constituem a matriz da cultura ocidental, a cultura hebraica e a
cultura bíblica. São inúmeras as histórias de hospitalidade da cultura
hebraica, como, por exemplo, o caso de Abraão, que recebeu os estrangeiros que
o visitaram antes do nascimento de Isaac, ou a parábola bíblica do bom samaritano,
que socorre um ferido que encontra na estrada, maltratado pelos ladrões, depois
de não ter sido socorrido por um padre e um levita que por ele passaram. Por
outro lado, toda a Odisseia, em cada um dos seus capítulos, acaba por ser um
hino à hospitalidade e à capacidade de receção e acolhimento dos estrangeiros,
representadospor Ulisses nas suas viagens, que não são nossos inimigos mas
nossos hóspedes e que partilham o mesmo lugar comum que a todos pertence, a
terra.
Os estrangeiros que nos visitam, sejam imigrantes por razões
económicas, sejam refugiados por razões políticas, são seres marcados por uma
vulnerabilidade extrema. Acolhê-los a partir de uma ética da hospitalidade e do
cuidado é um imperativo que mais não traduz do que o reconhecimento da
generosidade com que os nossos pais foram acolhidos em terras estrangeiras
quando tiveram de emigrar e da generosidade com que gostaríamos que os nossos
filhos e netos fossem acolhidos noutros países quando neles procuram refazer as
suas vidas por não encontrarem condições no nosso país.
Tolerância como diálogo e como hospitalidade, num respeito
pelo outro, pelas suas diferenças e pelas suas especificidades, é a forma de
realizar a regra de ouro de todas as religiões: não faças ao outro o que não
gostarias que te fizessem a ti (na sua versão negativa) ou faz ao outro o que
gostarias que te fizessem a ti (na sua versão positiva). Regra de ouro que,
afinal, mais não é do que a tradução do amor, tal como o ensina toda a mensagem
do Evangelho.
João Maria André
Paradela da Cortiça, agosto de 2020
João Maria André
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