REFLEXÕES - O turismo do ‘avesso’ como direito




Tomo a circunscrição geográfica como pretexto para pensar a mobilidade humana e o turismo como dinamismo cultural e económico. O ócio, no pensamento clássico, constituía exatamente o oposto de ‘neg-ócio’ e era o tempo livre para pensar. A realidade turística tem uma dimensão programada, mas uma outra que resulta da nossa apetência pelo inesperado. Tem de haver espaço para seguir um guião, mas também lugar para sonhar, espaço para as expetativas fabricadas pela propaganda, mas lugar para viajar através das pessoas que se visitam e disponibilidade para ver o menos visível.
O olhar avaliador comum sobre o nosso território deteta nele espontaneamente insuficiências e necessidades de crescimento. Na contemporaneidade, entra em cena a narrativa empreendedora e essa dinâmica torna-se modo de vida e passa a aparentar ser uma possibilidade ilimitada. Melhorar equivalerá, nesta ótica, a mais tudo, sobretudo, mais pessoas, mais estruturas e, no essencial, mais dinheiro.
E se pensarmos o ‘avesso’? Se sim, poderemos intuir que crescer é diminuir e acelerar para o ritmo que importa é aumentar a lentidão. Parece contraditório, mas vale a pena refletir. No primeiro exemplo, podemos estar a esgotar e/ou ultrapassar a capacidade dos espaços e das infraestruturas. Nenhum lugar é uma fonte inesgotável e desatender a este limite inibe que se desfrute humana e confortavelmente do seu potencial, enfraquecendo para o futuro [irremediavelmente?] a sua riqueza. Na segunda nota, fazemos da velocidade um paradigma que nos faz olhar apenas a finalidade, descurando o caminho para a atingir. Saltitamos de experiência em experiência, registando instantes, acumulando milhas, visitando locais como se fossem coisas que compramos e das quais nos descartamos porque depressa nos cansam. Elogiar a lentidão da experiência turística implica, no caso, dar tempo para que seja o lugar a visitar-nos a nós e transformar algo do que somos. A excessiva pressa não deixa que o caminho se mostre.
Pensar o turismo como uma estrita realidade de consumo parece uma redutora cedência ao numérico como chave de leitura da existência coletiva. Mais a qualquer preço, mesmo se elevado e ainda que não percetível no momento. Certamente que a rentabilidade tem de ser salvaguardada, mas uma sustentabilidade séria deve ser ancorada numa fundamentação mais densa, onde o humano e o ético não sejam secundarizados.  O turismo tem ainda de ser uma experiência estética, que molda e estrutura a sensibilidade, ou seja, os sentidos todos, por dentro e por fora. Trata-se de um dinamismo de fruição, capaz de penetrar na totalidade daquilo que a pessoa é, uma experiência íntima e não somente uma ‘coisa’ exterior que se pode possuir.
A viagem a algures não se limita a um percurso físico inscrito num mapa, com instantâneos de imagens e sons captados e divulgados ao mundo. Uma viagem digna do nome representa sempre alguma vi[r]agem interior. De modo similar, acolher aqueles que viajam até nós implica virar algumas das páginas do modo como somos e vivemos, como pessoas e comunidades. Ficando na mesma, significa que não saímos donde estávamos. E isso é demasiado pobre para tão profunda possibilidade.
 Nesta linha, um lugar é sempre mais denso que um espaço. É uma identidade, uma narrativa, um emaranhado de histórias que teceram as vidas que fizeram aquela geografia. Oferecer um lugar como destino turísitico é disponibilizar a todos este contexto. E tal ensejo implica escutar a[s] memória[s], enquanto a oralidade o permite, e registar o efetivamente significativo. De contrário, iremos contentar-nos com a replicação importada dos modelos da moda. Por isso é que os museus fazem sentido, e infelizmente falta-nos um dos bons, porque reconstroem as nossas vi[r]agens identitárias e nos alentam a prosseguir caminho criativo.
Uma opção pelo turismo que seja humanizadora atrai ‘os de fora’, sem expulsar ‘os de dentro’, criando uma simbiose tão dinâmica que se torna capaz de fazer com que todos sejam ‘da casa’. Acompanha a sazonalidade, mas faz do viajar e do acolher algo de regular. Acrescenta às infra estruturas um programa consequente. Perpetua a Tradição, mas polvilha-a com algo de diferenciador, que forme sem formatar e se torne realmente nosso, não o de outros em ponto pequeno. Os festivais temáticos e as residências artísticas são dois possíveis caminhos para um desenvolvimento consistente e ético dos espaços, sobretudo envolvendo os nossos, cuidando deles e colocando pessoas nos lugares. Hoje persistentemente alguns, amanhã os que forem possíveis e tiverem de ser.
Um turismo que sugue a ‘alma dos espaços’, ultrapassando largamente aquilo que naturalmente estes suportam, dificilmente se pode rotular de desenvolvimento. Pelo menos humano. Troca o cuidado pela geografia física e humana locais pela ideia de um desenvolvimento ilimitado, que é logicamente contraditória. Talvez fosse prudente, em nome do futuro, que o investimento, meritório e bem intencionado certamente, fosse acompanhado de instrumentos reguladores de cotas de ocupação e, nomeadamente, de uma carta ecológica como documento de base orientador. Temos de estar alerta e prevenir um turismo que consuma os lugares, sob pena de, no futuro, não haver lugares nem turismo.
Precisamos de um turismo que nos desembrulhe como pessoas e como comunidades, que nos ensine a ver, caindo na conta que as grandes viagens começam naquelas que nos levam a atravessar as nossas fronteiras mais interiores. É um direito que este ‘avesso’ seja tido em conta!

Luís Francisco Cordeiro Marques

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