ENTREVISTA - “Nem em 2011 foi tão duro, teremos de fazer mais com menos.” Presidente do Centro Hospitalar de Coimbra em vésperas da saída
O presidente do conselho de
administração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra passa a pasta
assim que a pandemia diminuir a pressão. Já com o mandato terminado, liderou
aquele que diz ser o maior hospital do país e anuncia agora, em dia de
manifestação em defesa da unidade dos Covões, a manutenção desta unidade e a
redução da capacidade de internamento nos espaços centrais. Uma conversa longa
e repleta de detalhes de como um grande hospital lida com a pandemia.
Christiana Martins e Ana Baião - Jornal Expresso
O CHUC foi talvez o centro hospitalar mais discreto durante a pandemia. Como lidaram com a crise de saúde pública?
A nossa política de comunicação foi uma opção. Estávamos concentrados em lidar com a pandemia, mais do que em comunicar. Os nossos primeiros casos surgiram a 12 de março: um crítico, para os cuidados intensivos, e dois estáveis. Mas, já no dia 1 de março, tínhamos um laboratório específico para analisar o SARS CoV-2. O CHUC está habituado a responder por si, como maior hospital do país e com uma longa história a resolver as situações que se colocam. Tínhamos 277 camas exclusivas para covid, sem contar as pediátricas. Eram 228 de enfermaria e 49 para doentes críticos.
Christiana Martins e Ana Baião - Jornal Expresso
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Fernando Regateiro - ANA BAIAO |
O mandato acabou no final de 2019, mas em tempo de
tempestade não se muda o comandante do navio. Neste caso, o Centro Hospitalar e
Universitário de Coimbra (CHUC). Ficar permitiu a Fernando Regateiro,
presidente do conselho de administração, atravessar a mais dura experiência
profissional da sua carreira. Gerir aquele que classifica como o maior hospital
do país não foi fácil em tempos de pandemia. Surtos de infeção, transformação
de áreas imprevistas, como uma garagem, para criar uma unidade de cuidados
intensivos e rutura de estoques de equipamento de proteção individual foram
apenas alguns dos obstáculos.
Agora, com a retoma à porta e de saída do hospital que
já havia dirigido, Regateiro prepara o regresso à sua atividade original, como
professor catedrático de genética na cidade dos estudantes. Mas, antes, terá de
lidar, esta terça-feira, com um cordão humano à volta dos Hospital dos Covões,
que na entrevista garante que manterá as portas abertas, apesar das dúvidas dos
habitantes da região.
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Fernando Regateiro - ANA BAIÃO
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O CHUC foi talvez o centro hospitalar mais discreto durante a pandemia. Como lidaram com a crise de saúde pública?
A nossa política de comunicação foi uma opção. Estávamos concentrados em lidar com a pandemia, mais do que em comunicar. Os nossos primeiros casos surgiram a 12 de março: um crítico, para os cuidados intensivos, e dois estáveis. Mas, já no dia 1 de março, tínhamos um laboratório específico para analisar o SARS CoV-2. O CHUC está habituado a responder por si, como maior hospital do país e com uma longa história a resolver as situações que se colocam. Tínhamos 277 camas exclusivas para covid, sem contar as pediátricas. Eram 228 de enfermaria e 49 para doentes críticos.
Qual o máximo de ocupação nos cuidados
intensivos?
Dez camas, num único dia. Mas, à partida, não sabíamos
quantos teríamos. O pico ocorreu entre 11 e 15 de abril, mas desde o dia 27 de
maio que não temos nenhum em cuidados intensivos. Entre os doentes não
críticos, o pico foi a 20 de abril, com 109 internados, hoje temos 15 doentes
internados. Mas nunca passámos do nosso nível um no hospital dos Covões. Tínhamos
mais 34 camas no hospital geral para doentes covid, todas dotadas de
ventiladores. Nunca estivemos realmente no limite de utilização. Mantivémos uma
enfermaria para doentes cirúrgicos, outra para ortopédicos e outra para doenças
infecciosas não covid e uma unidade de cuidados intensivos cirúrgicos e outra
para doentes cardiovasculares.
Então, nunca pararam completamente a
atividade não covid?
Não, embora a redução tenha sido impressionante.
Essa capacidade ventilatória era original
ou teve de ser reforçada com urgência?
Tínhamos uma capacidade de reserva, mas fomos buscar
equipamentos de anestesia compatíveis com a ventilação dos cuidados intensivos.
e fomos buscar a entidades externas, públicas e privadas. E recuperámos
ventiladores antigos, que estavam parados. Infelizmente tínhamos encomendados
18 novos ventiladores, que a empresa simplesmente disse não ter capacidade para
fornecer no prazo combinado. Tínhamos comprado mais cerca de 20 equipamentos de
anestesia, que supriram as necessidades geradas pela mobilização. Também
reforçámos as encomendas à China, que devem chegar esta semana, mas, se
houvesse um pico, não tinham vindo a tempo.
Nunca chegámos nem ao nível dois, mas estávamos preparados
para cinco níveis de cuidados intensivos. Este último está pronto e vai ficar
como uma reserva definitiva do hospital. Foi feito numa zona que não sacrificou
enfermarias, porque funcionava como garagem, onde instalámos um reforço de 15
camas de cuidados intensivos para alguma contingência que surja. Ou seja, foi
em tempo comum que preparámos o tempo de contingência.
Esse processo de reequipamento e
redefinição de espaços foi o momento mais tenso do seu mandato?
Foi mesmo uma experiência única e extraordinariamente
desafiante. Mas foi um momento para aplicar a experiência de gestão hospitalar.
Já tinha estado neste cargo entre 2007 e 2011 e voltei em 2017. Nem por um
momento duvidámos que iríamos ter uma resposta pronta, serena e resiliente.
Houve mudanças, deixei de ter papéis pendentes e houve dias em que o gabinete
de crise se reuniu mais de uma vez, a todo o momento em que era preciso. Sabe,
aqui há um grande sentido de pertença.
Como presidente do conselho de administração
de um hospital, receou que o CHUC pudesse enfrentar uma situação como a que
vimos em Itália?
Não, mas houve um momento crítico, num fim de semana
de meados de abril, em que estávamos a entrar em rutura, a ficar com uma
reserva de centenas de máscaras, quando nós gastamos por dia muitos milhares de
equipamentos de proteção individual, da ordem dos 15 a 20 mil por dia, e quando
encomendamos é aos milhões. Nessa altura fizemos um apelo solene à reserva
estratégica nacional. E funcionou, com um camião do Exército a vir entregar o
material. Este foi o momento mais difícil, em que ficámos completamente
dependentes do exterior para responder aos nossos clientes. É algo a que não
estamos habituados. Mas é preciso falar da mobilização da sociedade civil e de
alguns funcionários nossos, como as costureiras ligadas aos nossos serviços,
que começaram a fazer aquilo que mais faltava. A Universidade de Coimbra
começou a produzir viseiras. Foi um movimento espontâneo de vir ao encontro das
necessidades do hospital. É que temos oito mil trabalhadores, tocamos a toda a
malha social da região. Foi importante para colmatar as necessidades, mas
também pela simbologia. Mas é importante dizermos que atendemos doentes que vêm
de fora, cerca de 50% da prescrição ambulatória vai para fora do distrito de
Coimbra.
Como está a processar-se a retoma?
Temos vindo a decrescer os doentes com covid-19 desde 20 de abril, a um ritmo de cerca de menos 5% ao dia. Até lá estávamos a subir cerca de 8% ao dia. A certa altura, a governação clínica foi feita em sede de gabinete de crise, alterando o modelo de gestão hierarquizado do tempo comum, mas agilizando as decisões. Nós, por exemplo, tivémos vários surtos na torre, em algumas enfermarias, envolvendo médicos, doentes e enfermeiros. Cada vez que era detetado um surto, este era comunicado ao coordenador do gabinete de crise e a equipa fazia um inventário e para identificar o infetado e os seus contactados, que eram deslocados e isolados para uma zona de proteção e aguardavam aí os resultados dos testes. O restante da enfermaria era evacuado e o espaço desinfetado. Os infetados eram internados nos espaços covid. Agora, na zona cirúrgica, foi dada prioridade às áreas oncológica e à urgência, bem como às patologias com pior prognóstico vital ou funcional de órgão ou membro. Foram contempladas cirurgias programadas em situações oncológicas, urgências diferidas, propostas cirúrgicas muito prioritárias e prioritárias. A definição das prioridades assentou na avaliação das situações clínicas específicas. Na área ambulatória, a maior prioridade foi dada às situações oncológicas, havendo, inclusivamente, um aumento de 28,5% das primeiras consultas.
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Fernando Regateiro - ANA BAIÃO |
Como está a processar-se a retoma?
Temos vindo a decrescer os doentes com covid-19 desde 20 de abril, a um ritmo de cerca de menos 5% ao dia. Até lá estávamos a subir cerca de 8% ao dia. A certa altura, a governação clínica foi feita em sede de gabinete de crise, alterando o modelo de gestão hierarquizado do tempo comum, mas agilizando as decisões. Nós, por exemplo, tivémos vários surtos na torre, em algumas enfermarias, envolvendo médicos, doentes e enfermeiros. Cada vez que era detetado um surto, este era comunicado ao coordenador do gabinete de crise e a equipa fazia um inventário e para identificar o infetado e os seus contactados, que eram deslocados e isolados para uma zona de proteção e aguardavam aí os resultados dos testes. O restante da enfermaria era evacuado e o espaço desinfetado. Os infetados eram internados nos espaços covid. Agora, na zona cirúrgica, foi dada prioridade às áreas oncológica e à urgência, bem como às patologias com pior prognóstico vital ou funcional de órgão ou membro. Foram contempladas cirurgias programadas em situações oncológicas, urgências diferidas, propostas cirúrgicas muito prioritárias e prioritárias. A definição das prioridades assentou na avaliação das situações clínicas específicas. Na área ambulatória, a maior prioridade foi dada às situações oncológicas, havendo, inclusivamente, um aumento de 28,5% das primeiras consultas.
Nada disso foi noticiado.
Não tem de ser. E não tivemos um ou dois surtos,
tivemos vários, uns pequenos e outros maiores. Mas estamos treinados para os
resolver e criámos enfermarias-tampão, que também serviam para receber os
doentes enquanto esperavam os resultados dos testes.
Quantos dos vossos profissionais ficaram
infetados?
Até 25 de maio, entre 1709 mil testes de diagnósticos
realizados a profissionais nos seis polos, foram encontrados 210 infetados.
Nenhum em situação grave.
Quantos óbitos tiveram?
Até à mesma data foram 72 óbitos por covid-19, dos
quais 13 eram de pessoas entre os 90 e os 99 anos e 33 entre os 80 e os 89
anos. Nenhum abaixo dos 40. De doentes internados nos Cuidados Intensivos foram
quatro óbitos.
Quantos profissionais estiveram envolvidos
neste esforço da pandemia?
Foram 600 médicos, 700 enfermeiros, 350 assistentes
operacionais. Contratámos 129 novos profissionais, a maioria enfermeiros.
Agora, na retoma, ainda estamos a precisar de alguns dos espaços-tampão que
criámos. Já há enfermarias-covid que estão a trabalhar como Medicina Interna.
Mesmo no Hospital dos Covões, que foi dedicado exclusivamente à pandemia, vamos
manter áreas para doentes-covid.
O CHUC será o mesmo na retoma?
Durante a pandemia, mais de dois terços das consultas,
cerca de cem mil, foram não presenciais. Assim como intensificámos a entrega de
medicamentos em proximidade, que já alcança quase seis mil doentes. Criámos
três linhas telefónicas exclusivas para problemas covid, de esclarecimento, de
apoio emocional a adultos e profissionais e de apoio emocional pediátrico.
E criámos uma resposta laboratorial específica, mantivemos o nosso
e em parceria com a Universidade de Coimbra, a ARS e com o Instituto Português do
Sangue, instalámos um laboratório na universidade, dando cada um o que podia.
Chegou a fazer cerca de 20 mil testes em algumas semanas. Houve dias em que
tivémos de fazer quase 500 testes, parte aqui e parte lá. O mais importante é
que estes vários aspetos interferem grandemente na resposta a dar aos doentes
em termos regulares. As nossas enfermarias têm habitualmente 33 camas e não vão
poder continuar com este limite. Vamos ter de reduzir a ocupação máxima para 22
camas. Os quartos de três vão passar a duas e os de seis a quatro, como regra.
Não é recomendável, à luz das distâncias exigíveis, ter mais, o que vai ter um
reflexo muito significativo na disponibilidade de camas. Tínhamos 1736 camas no
final de 2018 e 1800 crónicas. E destas, uma parcela muito significativa
deixará de estar afeta a internamentos agudos.
Vai implicar perda de
capacidade de resposta?
Perda
de capacidade de internamento. Vamos ter de olhar de forma distinta para quem é
admitido no internamento. Se as instituições respeitarem os patamares de
complexidade dos diversos hospitais, centrais ou de proximidade, seja em que
região for, podemos retirar uma pressão de internamento que é manifestamente
inadequada.
Está a falar de falsas
urgências e camas sociais?
Todos
os dias tenho dezenas de doentes que recebem alta clínica e não têm para onde
ir porque não têm lugar nas estruturas de cuidados continuados. Terá de haver
um trabalho em termos de cuidado domiciliário, que vai levar a uma mudança de
atitudes e de comportamentos.
Começa quando?
Já
está a acontecer, as enfermarias já estão a ser adaptadas.
É uma decisão vossa ou da
tutela?
Temos
uma orientação de internamento seguro, nesse sentido, que significa que os
doentes não podem ficar muito próximos.
Pode dar uma percentagem do que
muda num prazo de um ano?
É
difícil, as geometrias serão variáveis. É melhor não lhe dar um número que não
está fixo ainda, mas será muito superior a cem camas. Nos Covões vamos ficar
com os cuidados intensivos dedicados a covid, uma enfermaria de 16 camas também
para covid.
Mesmo no verão?
Até
decisão em contrário é essa a decisão. A qualquer momento podemos ter doentes
infetados. Ontem, dos 280 doentes que nos procuraram, só dois estavam
infetados, mas temos de ter um fluxo próprio para os doentes covid, porque a
qualquer momento pode surgir um surto.
Antes, tinha sido nomeado
coordenador da reforma hospitalar. Aplicou esses princípios durante a pandemia?
Sim,
apliquei esta experiência, que me permitiu testar o conhecimento e a
resiliência.
Duas semanas antes de chegar o
vosso primeiro doente infetado, anunciou que estava a ser preparada a sua
substituição.
Estar
cá era um compromisso cívico e social. independentemente de ter terminado o meu
mandato e de haver uma equipa indigitada que assume funções assim que a tutela
entender.
Uma mudança que não foi feita
durante a pandemia.
Pelo
bom senso de quem governa, que agiu em consonância com os melhores interesses
que o meu momento determinava e teve da minha parte o empenho como se eu
estivesse no início do mandato. E quem vier terá um grande desafio pela frente,
que é responder, mesmo que de forma mitigada, à covid e responder ao aumento de
dificuldades de acesso que foram gerados por estes meses de contenção de
resposta. Além das dificuldades adicionais de redução de disponibilidade de
camas. O que vai exigir um acrescido esforço humano e orçamental, num período
que será de extrema exigência. Nem em 2011 a realidade foi tão dura, teremos de
fazer mais com menos.
O que fará quando sair?
Regresso
à minha atividade académica, que é a genética, e à coordenação do Mestrado
Integrado de Medicina da Universidade de Cabo Verde.
Originalmente publicada no jornal Expresso de 09.06.2020 - (conteúdo exclusivo a assinantes)
Originalmente publicada no jornal Expresso de 09.06.2020 - (conteúdo exclusivo a assinantes)
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