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Amigo maior que o pensamento *






A morte adoça a
agrura das tensões e das disputas. Vezes sem conta, os consensos
póstumos mascaram o ostracismo a que a vida foi votada por incómoda, por
dissidente, por provocadora.

Assim é com José Afonso, 25 anos
depois de morto. As expressões de admiração unânime por ele e pelo seu
trabalho que por estes dias se têm exibido são de uma artificialidade e
de uma falsidade sem limite. Os ordeiros de hoje e os normalizadores de
ontem dão as mãos e debitam, entre o alívio e a pose, frases feitas de
homenagem a quem querem crer que já não os poderá inquietar mais. A sua
estratégia é a da desmemória que pasteuriza o passado como se ele
tivesse sido feito de tranquilidade e de cordialidade palacianas.

Pois
não foi, com José Afonso não foi. Ele não foi apenas o autor de "trovas
e cantigas muito belas / trovas e cantigas de embalar". José Afonso
foi sempre, mais do que tudo, um cultor inquebrantável da subversão, um
castigador impiedoso do conservadorismo político, moral e cultural. Numa
entrevista a Viriato Teles, em 1985, estilhaçou a quietude: "O que é
preciso é criar desassossego. Quando começamos a criar álibis para
justificar o nosso conformismo, então está tudo lixado! (...) Acho que,
acima de tudo, é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se
trate de música ou de política. E nós, neste país, somos tão pouco
corajosos que, qualquer dia, estamos reduzidos à condição de
'homenzinhos' e 'mulherzinhas'. Temos é que ser gente, pá!"

A
música foi apenas a ferramenta que ele usou para trabalhar essa exigente
atitude cívica marcada pelo princípio da dissidência. Por estas e por
outras, a paga que teve foi a proibição de ensinar e a censura à sua
escrita de palavras e de melodias. Contra a mitificação consensual de
hoje, ele nunca teve a simpatia dos poderes - fossem políticos,
económicos ou culturais - porque nunca quis ser outra coisa senão "a
formiga no carreiro que vinha em sentido contrário" e que não abdicou de
dizer ao formigueiro "mudem de rumo! mudem de rumo!"

"Não me
arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com
reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é que
fica. Quando as pessoas param, há como que um pacto implícito com o
inimigo, tanto no campo político, como no campo estético e cultural. E,
por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e
os álibis de que nos servimos para justificar a modorra e o abandono dos
campos de luta", afirmou numa entrevista de 1984. Pois é. José Afonso
nunca transigiu, porque ele sabia que "não há bandeira sem luta, não há
luta sem batalha". Foi isso mesmo que fez ao longo da sua vida.
Mostrando a denúncia como imperativo moral e político essencial ("mulher
na democracia não é biombo de sala"). Apelando à vigilância ("se alguém
se engana com seu ar sisudo e lhes franqueia as portas à chegada"...)
contra os velhos e novos poderes que "vêm em bandos, com pés de veludo,
chupar o sangue fresco da manada". E tudo sempre em vista dessa "cidade
sem muros nem ameias / gente igual por dentro / gente igual por fora".

A
democracia que se quer cultura e não liturgia tem uma dívida de
reconhecimento para com José Afonso: a de ter mostrado a cidadania como
intolerância para com a injustiça e o atavismo. Nós, que somos filhos da
madrugada, sabemos que a nossa paga só pode ser a de abrirmos caminho a
uma "terra da fraternidade", onde "o povo é quem mais ordena". E dessa
terra lá no horizonte "ouvem-se já os rumores / ouvem-se já os clamores /
ouvem-se já os tambores".


I

Por José Manuel Pureza *

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