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RECOMEÇAR - O espelho que era um “inimigo” revela hoje uma “resistente” apostada em ser feliz





Força - Marlene Melo derrotou um tumor raro que atinge sobretudo pessoas acima dos 60 anos. Ela tinha metade dessa idade quando o descobriu e desde então foram anos de luta. Encarou o problema de frente e descobriu uma nova forma de estar na vida.

Margarida Alvarinhas - Diário de Coimbra

Ainda hoje, mais de 10 anos depois, Marlene Melo vira a cara a lado sempre que tira ou lhe tiram uma foto. «É instintivo, viro a cara para mostrar o lado melhor», admite. É meramente «instintivo», reforça, porque o problema sempre o encarou de frente. «Ninguém conta que aos 30 anos uma pessoa fica com a cara deformada», conta Marlene que hoje, com 41 anos, sente, contudo, que tem uma vida completamente nova. O dinheiro é importante, «claro», mas apenas para pagar as contas e viver o dia-a-dia. O que realmente importa é «ser feliz» e «desvalorizar aquilo que não é importante na nossa vida». E o futuro? «Não faço planos», responde, frisando que é assim que se sente realizada na vida.

«É uma nova abordagem, sinto-me mais serena, mais tranquila em relação a tudo», conta Marlene Melo, natural de Penacova e a residir em Coimbra. Mas nem sempre foi assim e o acontecimento de há 10 anos viria a mudar por completo a sua forma de estar e de ser na vida. «Chateava- -me com coisas que nos tiram saúde, que nos tiram anos de vida e, quando se vai a ver, não têm interesse nenhum», conta. E até admite que quando anda mais nervosa sente «automaticamente» que não anda bem fisicamente.

Uma nova história na vida de Marlene Melo começou a ser contada em Maio de 2009. «Acordei num domingo com a face esquerda paralisada», recorda. «No momento não achei nada, mas ainda assim liguei para a médica de família que me encaminhou para os HUC para avaliar, mas à partida era sistema nervoso», conta. Nos Hospitais da Universidade de Coimbra acharam o mesmo, mas o diagnóstico final não seria esse. «Nunca me tranquilizei e como não houve nenhum exame específico não fiquei satisfeita com a resposta», diz. Por esta altura, sentiu um nódulo no queixo que se viria a confirmar mais tarde ser uma metástase. A médica de família insistiu e pediu uma ecografia e a biópsia foi imediatamente o passo seguinte, realizada em Outubro desse ano. Estava lá o tumor, só não se sabia onde e só em Dezembro foi descoberto, depois de internamento para a realização de um vasto rol de exames. «Era um tumor na glândula parótida na zona da orelha a atingir parte do nervo facial». Foi imediatamente operada.

«Estive vários meses sem saber o que era, mas na minha inocência achava sempre que não era nada de especial. Não queria acreditar. Quando o médico me leu o relatório da biópsia na minha cabeça não estava a perceber, só quando ele disse que poderia haver necessidade e quimioterapia e radioterapia é que bati com a realidade e chorei», recorda. «É um bocado perder o chão, fiquei desorientada, a partir daí tudo mudou», recorda.

Radioterapia e uma tatuagem no aniversário

Depois da cirurgia para remoção do tumor, seguiram-se as sessões de radioterapia que começaram precisamente a 10 de Fevereiro de 2010, dia do seu aniversário. «Mas não pode ser no dia a seguir? O médico – espectacular, como toda a equipa – disse-me para ir para os copos e voltar no dia a seguir, fazer a primeira sessão e voltar novamente para os copos», conta. Marlene foi mais longe e marcou o dia com a realização de uma nova tatuagem. «Foi um marco. As coisas não iam ser tão más como as pessoas achavam», recorda. Positivismo acima de tudo sempre foi a forma de encarar o problema que não só era grave como era raro, tendo em conta que este tipo de tumor afecta pessoas geralmente acima dos 60 anos. Marlene Melo tinha metade dessa idade.

Foram mais de duas dezenas de sessões de radioterapia realizadas em que perdeu o paladar, a saliva e a voz. Mais ainda, «fiquei com a cara toda queimada», recorda.

Durante anos o espelho era como se fosse um inimigo que custa a aceitar quando se tem 31 anos. «Olhava-me ao espelho porque tinha de olhar, mas não olhava. Não olhava directamente para a zona afectada que estava queimada e deformada, não lidava bem com aquilo que era uma alteração que sabia que seria permanente. Foi um processo longo de aceitar que era assim», conta, recordando que o seu lado esquerdo da face era como se estivesse «adormecido»: não ria, não mastigava, não se movia.

No rosto da “nova” Marlene vê-se a felicidade de uma lutadora que em Outubro soube que vencera o cancro

Marlene tinha dificuldade em olhar-se, mas não escondia o problema de quem estava à sua volta. «Sempre achei que quanto mais depressa enfrentasse esse trauma mais depressa o iria conseguir ultrapassar». E conseguiu ultrapassar, mesmo tendo em conta que este é um processo que ainda não está fechado: depois da primeira cirurgia seguiu-se a radioterapia e várias cirurgias reconstrutivas, uma das quais uma transplantação de um nervo da perna para permitir ligar o nervo facial saudável ao músculo facial afectado para tentar recuperar pelo menos parte do movimento do sorriso, seguindo-se ainda, a seu tempo, uma nova cirurgia em que será retirada gordura da barriga para preenchimento da face onde se encontra um vazio. «Já lá vão mais de dez anos», recorda Marlene falando de uma data especial, «emocionante», quando em Outubro passado recebeu a boa notícia da alta do Hospital de Dia do S. Jerónimo. Significa que o tumor é coisa do passado e o presente é que importa. «Acima de tudo quero fazer coisas que eu gosto», diz esta “nova” Marlene Melo que começou a nascer quando o “bicho” lhe bateu à porta e entrou sem pedir licença.

Se há planos para o ano não se pode morrer neste

Marlene trabalhou durante 11 anos como back-office numa empresa que prestava serviço a uma outra grande empresa de telecomunicações, coisa que nunca gostou mas nunca se atreveu a abandonar. Vivia, diz, tipo «robot», como tantas pessoas que acordam de manhã e cumprem a sua rotina diária obrigatória, sem gostarem mas também sem nada fazerem para a mudar. Foi também isso que mudou para Marlene que ganhou a coragem de procurar fazer coisas novas, que realmente gosta e a fazem sentir feliz. «Descobri que gostava de costura e procurei fazer formações nessa área. Tirei um curso no CEARTE de costura a sério, apercebi-me que o meu caminho passa por não ser um robot, ando a formar-me, a estudar na área das artes manuais porque é isso que realmente gosto», garante. É claro que é preciso «ir equilibrando as finanças», o que consegue trabalhando numa clínica, mas, garante, «prefiro viver com o dinheiro contado e estar feliz».

Hoje quando se olha ao espelho vê «uma resistente». «Não tenho a cara que eu tinha, mas também não está assim tão mal como eu pensava que ia ficar. É sobretudo uma cara feliz e eu esforço-me todos os dias para isso», conta, deixando um conselho: «A quem passe por uma situação difícil como esta eu digo sigam em frente e pensem que têm coisas marcadas para o ano, por isso não podem morrer».


Originalmente publicado no Diário de Coimbra de 28.05.2020 (Suplmento Aniversário)



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