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REFLEXÕES - Pressupostos repensadores da comunicação




Fora da generosidade familiar, a primeira moeda que ganhei foi na arte de ‘aviar’ [terminologia regionalista] um recado. Um expediente tipicamente rural, de espaços de escala próxima, à lonjura que a voz alcança e o ouvido escuta, dinâmica de gente que se [re]conhece.
Tomo esta memória para escrever sobre ‘comunicação social’ em contexto regional. O nosso. Simplificando, em vez de perguntar porque não há um jornal [tradicional] regional em Penacova, a questão interessante talvez seja como criar condições sociológicas [além de económicas – e não só financeiras] para a sua existência.
Comunicar não é acessório da pessoa, coisa que se faz. Comunicação é o que cada um é. Mesmo calado ou surdo. O esquema clássico emissor-recetor-mensagem ainda diz o essencial, mas já está longe de esgotar a dinâmica comunicacional. Os canais/meios são múltiplos, a bilateralidade é multilateralidade, a escuta é tão essencial quanto o dizer, a velocidade gera a ilusão da simultaneidade, a imagem é impressão digital nas memórias… Sem comunicação não há história, porque um eventual autismo humano e social equivaleria a morte. Pela narrativa dita na oralidade e impressa na escrita, na imagem e no movimento, cria-se identidade e laços de pertença. E isto é alicerce comunitário, andaime de Humanidade, cimento de relações sociais.
Nesta lógica, o deficit de comunicação regional[1], não é uma simples ausência, mera estagnação ou o não acrescento de um elemento à sociedade regional. É regressão social, atrofio de cidadania e enfraquecimento da autonomia dos sujeitos.
A comunicação contemporânea implica um exercício permanente de seleção discernida, dentre a multiplicidade. Distinguindo notícia de opinião e sem fazer desta ‘doutrinação’, porque ela apenas sobrevive alimentada pela relação com outras opiniões. A resignação diante da constatação de que apenas se lê a espuma dos títulos embrutece e infantiliza. A pretensa democratização da comunicação, ancorada na generalização das redes sociais, ainda carece de uma ação educativa que nos ofereça gramática para usar bem esse dispositivo. Como consequência concreta, podíamos assumir que querer ir a todo o lado equivale quase sempre a não estar em lugar algum.
A dupla contingência da comunicação como atualmente a consideramos gera surpresa e equívocos, mas é simultaneamente um desafio. Trata-se de tomar consciência de que aquilo que se diz pode assumir um rumo inesperado em quem ouve, do mesmo modo que este recetor não controla nunca o modo como nós acolhemos o seu feedback. Como corolário lógico deste pressuposto, podíamos exercitar a resistência à tentação do autoritarismo comunicativo de deter o exclusivo da síntese, o ‘tique’ da última palavra, ou a imposição ditatorial do fechamento compartimentado e autista dos assuntos.
Como terceira nota, a comunicação na atualidade dinamiza-se a partir de expetativas e não de certezas absolutas, por exemplo. Mais complexamente ainda, estrutura-se segundo expetativas de expetativas. O emissor comunicacional toma uma iniciativa a partir das expetativas que tem em relação às expetativas do seu auditório. Entre outras conclusões, tal ideia implica reconhecer a identidade emancipada dos recetores, sujeitos de autonomia não amestrável por ideologias de tendência dominante, bem como colocar de lado os melindres mal humorados resultantes de eventual discordância ou hipotética não aceitação.
Descendo ao concreto, retomo o começo do texto. Estamos num território onde ‘aviar’ um recado é possível, num espaço que se percorre a pé e onde devemos extrapolar o trabalho dos trilhos que nos levam ‘onde a natureza vive’, para o desenho de percursos que conduzam as pessoas e as freguesias umas às outras. Entre outras dimensões, do ponto de vista comunicacional, fazer de conta que somos um sítio grande, com uma ‘máquina burocrática’ que não agiliza a comunicação, não nos permite ser um grande sítio.
Sem pretensões exaustivas, alguns aspetos inibem a importância que deveria ter a comunicação, num território com estas caraterísticas. O complexo da sacralidade do nosso ‘espaço’ territorial, cultural, ideológico, tido como manancial de plenitude virtuosa e intocável por que se situa fora das suas fronteiras. O complexo do isolacionismo falsamente competitivo e ilusoriamente auto suficiente, que nos convence de que temos tudo e o que não temos teremos forçosamente que ter, de preferência em detrimento dos nossos rivais. O complexo da agenda preenchida como sinónimo de poder e importância, não compaginável com disponibilidades imediatas. O complexo do pensamento único, detentor do exclusivo da inteligência, da criatividade, da ética e da capacidade de fazer.
Estas e outras premissas, conduzem a que não haja quase nada para dizer, além de ocasionais elogios auto proclamados ou encomendados. Levam a que não existam hábitos de escuta, pelo fraco sentido de implicação na coisa pública e pela intuição de que os aborrecimentos antecipáveis não são compensadores.
Não se percebeu ainda que tudo é comunicação, que decidir não comunicar é uma impossibilidade lógica e que a questão está em fazê-lo bem ou mal. Ainda não se reconheceu que a comunicação gera comunhão e que uma sociedade apenas se constitui por laços concretos de pertença e que os eventuais ‘decretos’ são somente sancionadores desta atitude humana de relação e encontro. Ainda não se interiorizou que formar consciências críticas não representa um risco por aquelas poderem escolher um caminho diferente do nosso, mas é o passaporte para o futuro de uma sociedade verdadeiramente humana.
Assim, ter comunicação social regional não é uma questão financeira apenas. Trata-se de questionar o modelo de pessoa que educamos e o paradigma de sociedade que projetamos. [Re]pensar isto com inteligência agora é mais sábio que reagir às inevitabilidades que a história trará seguramente até nós. Quem pode concluir, conclua. À sua escala, de acordo as suas possibilidades e responsabilidades.


[1] Pese a existência de projetos digitais de imenso mérito, quase milagrosos quando analisados os recursos que envolvem, onde, sem favor, o Penacova Actual ocupa um lugar de protagonismo, mesmo se não reconhecido convenientemente.


1 comentário:

  1. Excelente e pertinente artigo (a par de outros que vem publicando) que merece a reflexão de todos os penacovenses.

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